Casos de família - Gerson

O nome Gerson foi escolha minha, homenagem a Gerson de Oliveira Nunes, o Canhotinha, jogador do Flamengo, Botafogo e Seleção brasileira, tricampeão do mundo em 1970. Ubaldino, foi a mamãe, certamente homenageando o marido. Nosso Gerson não gostava do nome Ubaldino, mas gostava da junção das iniciais e assinava por todo lado: GUSP.

Quando menino tinha uns encolhimentos involuntários do braço esquerdo (ou era o direito?) e ficava apavorado porque o braço parecia que queria dar-lhe um soco na cara. Lembro de sair correndo com ele para levar no Antônio dos Santos, nosso pronto socorro da época, a pedido da mamãe. Essa disfunção acabou com o tempo. Depois, foi operado de estrabismo; ter sido caolho na infância alimentou muito bullying, principalmente dos irmãos. Eu não, não sou disso.

Fez muitas músicas com o Reinaldo Pereira de Souza, nosso "Rohr". A mais conhecida dessa dupla é "Piatã Salvador". Estou pensando em gravar essa e um rock muito bom que fizeram, o "Rock Cogumelo". Ele me substituía muito bem junto do Rohr, depois se tornaram parceiros independentes de mim. Ele já me desafiava intelectualmente a partir de certa idade, criticava com razão algumas letras que nós fazíamos e ajudava noutras. Eu me surpreendi no início, depois vi que ele tinha futuro mesmo.

Quando me formei no ginásio, em 1965, ganhei um livro de presente do paraninfo, não me lembro quem. Acho que era um político mineiro. O livro se chamava “Siriri no país das castanhas”, a história de um esquilo. Não sei como, o Gerson gostou do livro. Ainda não sabia ler, só chamava o livro de "Siriri castanha debaixo dos aramis", E esse título ficou na memória e em nossas gozações.

Nunca foi bom de bola, mas era raçudo. Quando voltei do exterior, em julho de 1980, de passagem por Lisboa, comprei 5 camisas do Benfica, pensando em fazer um time de futsal com os irmãos. Comprei também uma do Sporting (essa especialmente para mim, porque era meu time em Portugal, lembrava as cores do América Mineiro). Finalmente, fiz o time de futsal dos irmãos, o meu sonho: Eninho (também ruim de bola, porém, pelo menos pegava bem no gol), Gérson, Tonho, Beto e eu. O Tonho era bom, eu sempre fui mais ou menos, e o Beto muito bom, mas queria a bola só pra ele e não sujava o calção nem despenteava o cabelo. Ajuntávamos com o Rohr, um craque, meio que irmão nosso também, quando ele estava de bom humor e sem namorada. Jogamos nas minhas férias de 1980 quase todo dia lá no Grupo da Zulma, no Lavrado.

Terminadas as férias, voltei ao trabalho em Brasília. Em outras férias, quis jogar de novo com os manos, mas já não tinha camisas, elas sumiram, uma após a outra. Não sei se estragaram, sumiram ou foram doadas. Dependendo do Gerson, teriam sido doadas a meninos da periferia. O mais certo. Mas o Tonho deve saber que fim levaram.

Foi morar em Brasília comigo em 81 ou 82. Estudou supletivo no CESU-DF. Nessa passagem, tomou muito golo comigo lá no famoso Beirute. Se enturmava logo com os músicos que apareciam por lá, mas não ficou muito tempo pela capital. Numa véspera de Semana Santa, foi de carona pra Pitangui e levou o Iúri, na época morando comigo, eu estava divorciado. Os dois foram, mas nem ele nem o Iúri quiseram mais voltar. Acho que a culpada foi a Lelé, Maria Helena Gouthier, mãe do Ícaro. Foi você, Lelé?

Esse pedaço agora não podia faltar. Ficou na história. Foi a famosa cena de nudismo que ele proporcionou no Centro Social, em pleno baile de carnaval. Brigou com a Lelé e sentenciou: não vou vestir fantasia pra você nem pra mais ninguém. Não gostava de usar cueca. Daí, abaixou o bermudão no corredor de descanso e passou pelo salão lotado assim como chegou a esse mundo, causando um reboliço no clube. Recebi a notícia do Tonho, mas o barulho do salão, algumas cervejas na cabeça e um papo romântico que parecia promissor, me confundiram:

- O que? Fala mais alto... o Gerson foi atropelado?

- O Gerson entrou pelado...

- O que??? Tá muito barulho, a gente fala depois...

E voltei ao papo romântico.

Fui saber da história já de manhã. Ele tinha desfilado nu pelo salão do Centro Social, foi detido e levado à delegacia. O Tonho, vestido de mulher, com xuca-xuca e tudo, foi bravamente defender o irmão logo depois do fato e o encontrou já com um cobertor nas costas cobrindo a nudez revolucionária, a doutrinar o policial de plantão. Já estava armando uma rebelião e queria convencer o policial a entrar imediatamente nas hostes do PT.

Uns tempos depois, meio triste, me pediu pra voltar a Brasília e morar de novo comigo.. Não sei quando, talvez 82, 83. Eu não disse que não, mas não encorajei também. Já estava com planos de deixar Brasília e voltar a Pitangui, não podia me comprometer. Depois não tocou mais no assunto.

Uma sexta-feira à noite, em março de 1985, fui chamado na secretaria da Escola Classe 15, no Gama, em Brasília, onde trabalhava, O Rui, militar do Exército, professor de Geografia, veio me dar a notícia do acidente e da morte. Passou-me o telefone e quem confirmava tudo era o querido Zé Emídio de Castro, meu treinador de futebol, casado com a Tereza Tavares, prima em primeiro grau da mamãe. Foi um baque. Não dormi aquela noite, sonhei o tempo todo com ele. Em alguns dos sonhos, ele estava fingindo de morto, de repente se levantava e ria por ter me enganado. Pena que era mentira, ele tinha realmente partido.

Não dormi direito, de manhã não quis comer, só pensava nele. Não queria acreditar, não podia ser. Ele não, qualquer um podia. Ele não. Eu andava pela praça central de Taguatinga, sem rumo, pensando, sem entender, sem querer entender, perdido. Ele era muito importante pra mim, era como se fosse eu mais novo, eu o entendia, tinha passado todo o período da adolescência com as mesmas preocupações e dúvidas. Às três da tarde, sem ter almoçado nem sentido fome, cansado de pensar, falei comigo mesmo e fiz uma piada:

- Cara, se não consegue parar de pensar nele, pelo menos almoça. Chorar de barriga cheia é mais suportável.

Fui no Pão de Açúcar e comprei uns pacotes de miojo. Aquele sábado foi assim. Não corri pra Pitangui para sofrer mais. Deixei a semana correr e viajei para assistir a missa de 7° dia, na igreja do Bom Jesus. Ali, meio grogue ainda, ri um pouco. O Tonho apontava para uma mulher que cantava o tempo todo na missa. Sua voz era forte, abafava todas as outras, mas como cantava mal e era feia!

Gerson, o Trainha, passou muito rápido por este mundo, viveu apenas 21 anos. Fez, porém, o que dizem ser o mínimo: teve um filho, o querido sobrinho Ícaro, uma netinha, a Maria Júlia; escreveu muito, fez letras de músicas e deixou um livro de poemas, o “Luz! Noite adentro”. Também plantou árvores e amizades por todo lugar onde morou. Teria hoje 58 anos. Nunca deixei de sentir sua falta, dói muito, muito mesmo, saber que o perdi tão cedo.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 02/12/2021
Reeditado em 01/04/2022
Código do texto: T7398496
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