O Sobrevivente - reeditado

O Personagem

José, pedreiro e morador no Morro do Bumba, em Niterói, há seis anos que vive amasiado com Dolores com quem se dá muito bem e a quem considera sua esposa. Ela é doméstica e mãe do seu único filho, um menino de quatro anos. A sua sogra vivia em Maceió, depois da morte do companheiro ela aceitou o convite para vir morar com a filha mais velha no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Chegara de mudança havia uma semana.

Dolores combinou com o marido de visitar a irmã naquele Sábado, e só voltar, no Domingo, à tarde. Não fosse um serviço já contratado e a necessidade do dinheiro José também acompanha-ria a patroa entusiasmado, pois já vem de muito tempo seu desejo de conhecer pessoalmente a sogra, com quem fala por telefone e só viu em fotografia, além do mais há meses que não atravessa a Baía de Guanabara e sente falta do passeio.

Na manhã do dia seguinte, a família levantou cedo da cama para aproveitar bem o dia e após a refeição matinal já estavam prontos para sair de casa, juntos desceram o morro até o ponto onde Dolores pegaria a condução. Com a aproximação do coletivo o casal se despediu com uma rápida troca de beijos. Ansiosa por reencontrar a mãe depois de anos sem se verem, assim que o ônibus parou Dolores embarcou apressada com o filho no colo, o jovem Giancarlo, que levou de companhia para já conhecer a avó. O veículo retomou a viagem enquanto José saiu caminhando na direção oposta; foi atender ao compromisso previamente acertado, virar concreto na batida de uma laje.

Chegado ao local da obra, imediatamente se constatou a ausência de alguns operários; a pedido do dono da empreitada, os que compareceram então formaram um grupo, avaliaram as condições de trabalho e aceitaram executar o serviço, cientes de que, com menos colaboradores, o esforço seria grande. Ao final, no acerto de contas, cada um recebeu em dobro o valor previamente combinado, tanto por conta dos que faltaram quanto pelo empenho extraordinário da equipe reduzida, que foi mesmo puxado e cansativo. A laje, que deveria ter ficado pronta por volta do meio-dia, só foi concluída às três horas da tarde.

Terminada a lida, foi servido um almoço para os trabalhadores. A cerveja estava liberada e, para quem aprecia, a cachaça também. José fartou-se. Mais tarde, cansado, ele subia o morro caminhando trôpego na volta para casa quando, ao passar diante do bar do seu Alfredo, ouviu alguém gritar seu nome e deteve o passo. O chamado veio de alguns amigos que queriam lhe falar. Acatou o convite, juntou-se ao grupo e ficou a beber e a conversar enquanto jogavam partidas de bilhar.

No relógio pendurado na parede dentro de casa, os ponteiros registravam nove horas da noite quando ele finalmente chegou cambaleando, abriu a porta de entrada com muita dificuldade, subiu o degrau e acendeu a luz da sala. Apoiando-se às paredes evitou a cozinha e seguiu direto para o banheiro, tomou um banho demorado e por fim, caiu na cama, exausto, e logo dormiu.

O Sonho

José sonhava que estava no mar, mergulhava para um lado, nadava para o outro, até que ficou a boiar no mais prazeroso deleite totalmente entregue ao balanço das ondas. Inesperada-mente desceu numa vaga bem maior que as de costume e adiante começou a subir a onda que seguia em direção à praia; esta dobrou acima de seu corpo iniciando um funil; quando se deu conta do que estava prestes a lhe acontecer, já era tarde para tomar qualquer providência, pois se encontrava dentro do enorme tubo d’água e não havia mais o que fazer a não ser, pedir a benção divina e entregar a sorte ao destino. Sugado pelo sorvedouro girou dentro do torvelinho, despencou num abismo eterno e desceu fundo no oceano de águas límpidas. Posteriormente surgiu na areia deitado de bruços e de costas para a praia, ligeiramente ao alcance das ondas. A todo instante elas arrebentavam num estrondo, uma após a outra, progrediam sobre ele numa enxurrada de água com espuma e muita areia, porém logo recuavam em abandono passageiro, mais à frente, a ação tornava a se repetir. Esse movimento do mar era evidente, o que era levemente perceptível embora estivesse acontecendo rápido, era a mudança de posição da areia; esta era levada pelas ondas e avançava sobre o seu corpo onde permanecia feito um cobertor. Mediante esse processo constante ele desaparecera rapidamente, e quase por completo, apenas a cabeça, com o queixo apoiado sobre os braços cruzados, mantinha-se inteiramente descoberta, seguramente não ficaria assim por muito tempo.

O Drama

José acordou. Estava deitado de bruços, como no sonho à beira-mar, entretanto a cabeça estava de lado apoiada sobre os braços cruzados. De imediato notou que estava imobilizado por uma grande massa, não sabia dizer do que, cobrindo-lhe quase todo o corpo: os pés, as pernas e as costas até a altura das omoplatas. Queria mudar de posição, deitar-se de costas, todavia estava preso e não conseguia se mover. Apático ele não desejava despertar de vez, porém, ainda que contra a própria vontade abriu os olhos sonolentos, mas só enxergou a escuridão. Moveu as pupilas de um lado para o outro e de cima para baixo, piscou várias vezes, procurou à sua volta uma réstia de luz qualquer e se deu conta de que o negrume era realmente absoluto. Essa constatação causou-lhe profundo mal estar.

Será que eu estou acordado de verdade! exclamou intrigado, não acredito que eu ainda esteja sonhando, resmungou duvidando dos seus sentidos, então, por que estou encoberto de terra? Perguntou de si para si mesmo e continuou na sua reflexão: não compreendo o motivo de toda essa escuridão e cego eu tenho certeza de que não estou, ponderou. Ninguém fica cego de uma hora para outra sem um motivo concreto, justificou. Além dessas dúvidas, não recordava quais foram as suas últimas ações até se deitar e pegar no sono. Na sua memória viva e presente havia um oceano de águas límpidas e uma forte lembrança de si próprio girando subjugado no mar em redemoinho, e isso parecia muito real; havia, também, ondas a quebrar na praia e um cobertor de areia. Parou um instante para raciocinar e com muito empenho tentou se lembrar de que maneira fora parar naquele lugar extraordinário, infelizmente nada veio à lembrança. Sofreu uma amnésia alcoólica e não se recordou da obra, nem dos amigos, da bebedeira, nada. Fez um esforço de memória inútil e em função do ato penoso a cabeça começou a rodar e a cama parecia flutuar. Nauseado com a perturbação cerebral súbita fechou os olhos, relaxou a mente e esperou, sem pressa, até se livrar do distúrbio e reconfortar o ânimo.

Conquanto desorientado, mas já recuperado da vertigem, decidiu não fazer juízo prematuro da circunstância; achou por bem primeiro analisar a disposição de tudo ao redor com muita calma. Sem a claridade mínima para enxergar o ambiente sabia que enfrentaria enorme dificuldade para avaliar o que quer que seja, apesar de tudo, não se deixou abater. Ainda jovem aprendeu com a vida que, usar a razão para elucidar o desconhecido ajuda a afastar o medo. Determinado a seguir o aprendizado logo notou que o braço esquerdo dobrado sob a cabeça formigava levemente pelo longo período de imobilidade. Fechou a mão esquerda sob o braço direito na altura do sovaco e espremeu o lençol da cama, amarrotou o tecido entre os dedos e constatou que estava molhado. O que é isso?! Tenho certeza de que não urinei enquanto dormia! Estava muito confuso, e as constatações que se seguiam, longe de lhe acenderem a luz do entendimento, pelo contrário, mantinham-no inteiramente envolvido numa escuridão de ignorância ao ponto de duvidar seriamente de estar mesmo desperto. Devo estar dormindo, pensou, carente de provas. No sonho eu acordo e encontro esses absurdos, só pode ser. Aprumou a cabeça no pouco espaço que havia e ficou com o queixo apoiado sobre os braços cruzados, em seguida fechou a mão direita, apertou o ombro do lado esquerdo e depois, abriu e fechou os dedos sem dificuldade; ao tentar esticar o braço, este avançou pouco mais de um palmo e bateu em algo duro. Caramba! Não quero ficar apavorado, no entanto não reconheço esse lugar. O que será isso à frente, uma parede? Quis esticar o braço pro lado, de novo algo lhe impediu o movimento. Percebendo que o espaço era restrito, bateu com força o cotovelo para afastar o que estava lhe sufocando, nada saiu do lugar. Tornou a apalpar o obstáculo duro à frente, constatou que a superfície era lisa e estava molhada, porém não conseguiu identificar o que poderia ser aquilo. Esfregou as unhas para se certificar: tão duro quanto pedra, não havia dúvida. O que será isso, liso e duro desse jeito, uma chapa de vidro? De onde terá vindo, e essa água? Não, não pode ser! Questionava e, ao mesmo tempo, negava os próprios pensamentos. Inconformado continuou deslizando a mão exploratória sobre aquela superfície escorregadia até que, sem muita convicção, reconheceu aquilo que tateava: era o ladrilho, que reveste o chão do quarto. Como foi que o chão veio parar aqui, sobre a cama, logo à frente? Será que o mundo virou de ponta-cabeça?

Diante de disparate tão medonho Zé aquietou a imaginação, inspirou com vontade, depois expirou o ar num sopro entediado. O absurdo daquela situação confundiu-lhe as ideias e ele não soube mais em que pensar. Sem temer a má sorte decidiu entregar-se ao sono novamente e esperar o dia raiar. Deitou a cabeça sobre os braços cruzados e fechou os olhos. A fadiga ajudou, o álcool e a carência de sono também, adormeceu novamente.

O Evento

Ao amanhecer, informava o noticiário do jornal:

"A chuva começou de madrugada. O temporal veio acompanhado de uma ventania que chegou a registrar mais de 70 quilômetros por hora. Um deslizamento de grandes proporções ocorreu na cidade, encobrindo de terra aproximadamente 40 casas. Bombeiros estimam que cerca de 200 corpos estejam soterrados no local."

O Desfecho

No morro do Bumba, em Niterói, José fora resgatado ainda grogue seis horas passadas após o deslizamento de terra.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 02/12/2021
Reeditado em 29/10/2023
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