Sem sal, não

 

     1. "Estou hoje com bem pouca disposição para escrever. Conversemos".

          Com esta frase o cronista José de Alencar, filho querido do Ceará, iniciou uma de suas crônicas. Faço o mesmo porque também é pouquíssima a minha disposição de escrever alguma coisa nesta manhã cinzenta de Salvador. Portanto, conversemos. Uma conversa a mais curta possível.

          Vou contar uma história que, com certeza, meu leitor, pouco ou nada vai lhe interessar. Mas como é uma simples conversa, vá lá. 

          2. Em minha casa, sou repreendido porque amo o sal. Uns acham que vou ter um infarto e outros que sou um sério candidato a ter um derrame. Ouço tudo isso e suplico: não me deem comida insossa, pelo amor de Deus.

          Já demiti uma empregada porque ela nunca acertava na dose de sal com que devia temperar minha sopa. Pode parecer uma deslavada mentira, mas não é. Jocoso pode ter sido o motivo da demissão. Admito. 

          3. Para não deixar passar, quero dizer que também adoro açúcar, apesar de ser diabético e acompanhado por uma médica que se assemelha a uma sacerdotisa. Ou seja: faz da Medicina um verdadeiro sacerdócio. Entre outras coisas, me mantém preso a adoçantes e produtos Diet. Nada substitui a velha sacarose. Nasci e me criei comendo açúcar. 

          4. Repito: gosto muito de sal.  Por causa dele, vivo sobressaltado, não nego. Comprei um tensiômetro e me tornei escravo dele. Vez em quando, pergunto-lhe como vai minha pressão arterial, que já foi muito boa, nunca ultrapassando os limites do aconselhável.  Diferente d'agora que oscila, sempre para mais, um dos achaques provocados pelos anos já vividos, e são muitos. Mas fazer o quê? Só tem um caminho: Não esquecer o Natrilix. 

          5. Dia desses, compareci a um churrasco. Não resisti à linguiça que se apresentava criminosamente no espeto pegando fogo. Salgada, como era de se esperar. Mas deliciosa, parceiro. Esqueci minha pressão e avancei sobre ela. Comi com a gula de um Imperador romano. Deixei o churrasco como um vitorioso. Quando cheguei em casa, constatei que não passara de um glutão rebelde. Excedera-me, sim, no sal...

          6. Caíram de pau em cima de mim. Acusaram-me de ter comido todo o estoque de sal comprado para o churrasco. Exagerados! Procurei me defender, negando... negando cinicamente. Arrolei testemunhas, mas todas foram recusadas. Nenhuma merece confiança, disse a parentela. Verificou-se que todas eram glutonas. Por isso, jamais denunciariam o companheiro de sal. E era verdade.

          7. Foi uma luta para fazer minha pressão baixar. Ela insistia em 15, o máximo. Não sei o que me deram. O certo é que, de repente, ela voltou aos níveis razoáveis, alegrando a todos. Ultrapassada a borrasca, a promessa de sempre: churrasco, nunca mais.  Ninguém acreditou. As opiniões coincidiram: não resistirá ao próximo convite. Pelo menos daquela vez o meu marca-passo foi o heroi.

          8. Dias depois, no almoço, trouxeram-me um feijão mulatinho insípido, sem uma pitada de sal. Recusei-o, sem maiores delongas. Para aceitá-lo, impus uma condição: que pusessem sal no feijão. Fui atendido. Comi para valer, apesar da advertência de que "você vai morrer, desgraçado!" Enfrentei, com a disposição de um jovem guerreiro, o mulatinho da Esmeralda, minha boa empregada.

           9. Dias depois, chamei a Esmeralda ao meu escritório, tirando-a alguns minutos da cozinha. Causei-lhe um tremendo susto porque ela nunca esperava tal convite. E ela foi logo me perguntando: - "O que estava sem sal, patrão?" Respondi: sossegue, nada. Queria só saber se você, por acaso, ouvira falar de um padre chamado Antônio Vieira. E ela: - "Não senhor. Que tem ele a ver comigo?". E passei a lhe falar sobre o grande pregador jesuíta.

          10. Veja, Esmeralda, esse padre nasceu em Lisboa, Portugal, no dia 6 de fevereiro de 1608 e morreu, em Salvador, Bahia, no dia 18 de julho de 1697. E ela: - E daí?  Queria dizer-lhe que o padre Vieira, num de seus célebres sermões, disse que o sal tinha o efeito de impedir a corrupção, ou seja, impedia as coisas de apodresserem. Houve um tempo em que se salgava a carne para ela não estragar.  

          11. Esmeralda ouviu minha pregação com o máximo de atenção. Abriu a boca para dizer somente isso: "O senhor, patrão, é um sábio quando diz gostar de sal". A partir daquele momento, nunca mais faltou sal na minha alimentação. Quando ocorre salgar de mais, ela cita o jesuíta em sua defesa. 

          E eu só tenho a agradecer ao  "padre do estalo"  pelo seu sermão - no Maranhão, em 1654 - bendizendo o sal.   

          

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 04/12/2021
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T7399764
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