Sumidouro

- Olha, o gatinho preto entrou dentro da boca-de-lobo. Tadinho, tá tão magrinho.
- Eles se escondem quando estão pra morrer.
- Não, isso é lenda, já li sobre isso.
- Os meus gatos, quando vão morrer, somem.
- Os meus não.
- Ah, mas tu só cria gato dentro de casa, né.
- Vamos lá tirar ele dali?
- Ah, já tá escuro e tá chuviscando... Tá, vamo.

Valquíria gosta muito de bichos e os protege, boa alma, não consigo resistir a lhe prestar auxílio. O pequeno gato preto, muito fraco, entrou na boca-de-lobo – o nome já é mau agouro. A tampa de concreto é pesada, fizemos bastante força juntos para levantá-la, jogando-a para o outro lado. O gato nos viu e se arrastou lentamente pra dentro de um cano.

- Viu? Não disse? Ele se escondeu pra morrer.
- Que nada, tá só assustado, com medo da gente.
- Que seja, mas vamos sair daqui que tá apertando a chuva. Depois ele volta. O sumidouro é fundo e ele, do jeito que tá, não vai conseguir subir.

No outro dia o gatinho preto tava mesmo lá, como eu disse, mas morto. Valquíria ficou inconsolável, desejava muito salvar o gato. Uns tem sorte na vida, outros azar. Gatinho preto azarado, se fosse meu ou da Valquíria, moraria no conforto de um lar, alimentado, cuidado e indo regularmente ao veterinário. O gatinho preto morreu, a criança tem uma doença degenerativa e o idoso uma terminal. Outros, com sorte, morrem dormindo, bem velhos. As bocas-de-lobo da vida aguardam os azarados, a grande maioria vítimas da exclusão e da desigualdade social.

(Esses dias achei o corpo de um filhote bem novinho de passarinho no chão, numa linda tarde de sol. Nublou meu coração ver o ser nascido para voar pelo céu azul morto sem nunca ter exercido o dom de sua natureza. Peguei seu frágil corpo com cuidado e o coloquei sobre um girassol amarelo. Foi a minha maneira de mostrar respeito e consideração por sua breve passagem por esse plano físico, antes de enterrá-lo.)

Passa por ali a Gláucia, amiga da Valquíria. A Valquíria conta a nossa tentativa fracassada para com o gatinho preto. Eu falo que ele entrou na boca-de-lobo para morrer. A Gláucia arremata:

- Eu tinha um cachorro, ficou bem velho. Um dia nós estávamos no pátio e ele veio, se esfregou em todo mundo, fez festa e depois saiu. Sumiu, nunca mais vimos ele. Dias depois um conhecido disse que viu ele entrando numa boca-de-lobo.
- Viu, não te falei? Não é lenda nada.

Nada disso fará diferença. Quem vai lembrar daqui uns tempos que um gatinho preto esquelético morreu numa madrugada de chuva dentro de uma boca-de-lobo? Ou que outros azarados também morreram por aí, todos os dias da semana? A vida é um grande sumidouro.