Apocalipse

“Vi, então, descer do céu um anjo que tinha na mão a chave do abismo e uma grande algema. Ele apanhou o Dragão, a primitiva Serpente, que é o Demônio e Satanás, e o acorrentou por mil anos. Atirou-o no abismo, que fechou e selou por cima, para que já não seduzisse as nações, até que se completassem mil anos. Depois disso, ele deve ser solto por um pouco de tempo.”

Livro do Apocalipse 20:1-3.

Certa vez li sobre uma interpretação do Livro do Apocalipse como uma parábola sobre as tribulações da vida humana. Não me lembro da fonte. Desse ponto de vista, o Apocalipse faria alegoria às tormentas e batalhas subjetivas que cada pessoa está destinada a passar em sua vida, rumo à melhoria de seu ser e de seu entorno.

Seja como for, é fato como passamos por batalhas épicas em nosso interior ao longo da vida e como essas batalhas parecem ir e vir. Temos guerra e paz em constante sucessão.

Quando criança e adolescente, costumava ter um sonho recorrente de especial interesse para este texto. Sonhava com um grande cão raivoso. Atacava-me implacavelmente e rolávamos no chão em grande batalha. O embate sempre fora sangrento, eu sentia-o me morder e arrancar pedaços enquanto eu esmurrava, arranhava e furava-lhe os olhos. Sempre acordava agitado. Não sabia o que aquilo queria dizer.

Sucedeu-se que, já em idade adulta anos após, tive o último destes sonhos – os quais vinham se tornando menos frequentes. Neste último, o cão simplesmente me veio como uma miniatura. Com um chute, foi parar longe do alcance de minha visão e nunca mais voltou.

Compreendo melhor olhando hoje, em retrospectiva, a metáfora que minha mente montou em forma de sonhos repetidos. Eu tive que vencer meu cão raivoso durante meu desenvolvimento como adulto. Muitos deles, na verdade. Quem não teve? Problemas que antes me eram grandes, agora são menores ou até se foram.

É de conhecimento comum aquela frase que diz mais ou menos assim: “a vida imita a arte e a arte imita a vida”. Temos um antigo roteiro, tão velho que acaba entrando em desuso ou sendo repintado. O sapo que vira príncipe, a fera que é bela, o Shrek e todos seus estereótipos e clichês. São feios por fora ou temidos pela aparência, mas acabam escondendo um belo brilho atrás de um feitiço ou de uma carranca. Até revelar seu resplandecer, há sofrimento e injustiça.

O Mito do Herói (ou Monomito), que Joseph Campbell introduziu em seu livro “O Herói de Mil Faces” em 1949, apresenta uma estrutura de padrão geral para os mitos da humanidade. Esta estrutura se encaixa nos ciclos de desafios e aprendizado pelos quais passamos pela vida, o que resulta em sofrimento e aumento de poder, passando por eventos de morte e ressurreição. Viver seja, talvez, passar por apocalipses.

Estórias e mitos são úteis por também retratar verdades profundas em forma de metáforas. Possuem uma essência geral que pode ser remodelada conforme pede o roteiro. Apreciando a ficção, a pessoa se inspira em um sopro de revelação perante um sofrimento presente. Assim, vida e arte se copiam gerando beleza.

Guimarães Rosa conhecia a sinuosidade da vida e escreveu: “Viver é um rasgar-se e remendar-se”. João, ao escrever o Apocalipse, poderia ter concordado com ele. Campbell também.

Deste tecido rasgado e remendado fazemos o aconchego de nossas vidas. Se não remendarmos direito, vamos sentir o frio da madrugada adentrando pelas fendas. Se esperarmos nunca mais ser rasgado, vamos ter uma surpresa desagradável quando voltar a acontecer. “... e o acorrentou por mil anos... Depois disso, ele [o Demônio] deve ser solto por um pouco de tempo.”