Volta pro bar

"Um vício custa mais caro que manter uma família."

~ Honoré de Balzac

Paro a bicicleta em frente ao portão. Meus amigos reclamam e batem o pé, insistem para entrar e passar a tarde. Sorrio e lhes digo que não tenho tempo, que lá dentro está tudo uma bagunça e eu preciso arrumar. Fazem cara de decepcionados, e jogam na minha cara o fato de nunca poderem entrar. Apenas sorrio sem jeito e me despeço, enquanto eles vão embora.

Mal sabem que estou poupando-os de presenciar o verdadeiro inferno.

Abro a porta e nada fora do habitual aparece diante dos meus olhos.

Minha mãe está na sala, assistindo TV e fumando seu inseparável cigarro. O cheiro do cômodo é insuportável e eu preciso tapar o nariz para falar com ela.

Caminho em sua direção. A mulher não move um músculo, ainda inerte pelo programa televisivo. Beijo sua testa e minha ela finalmente parece notar minha presença.

Minha mãe sorri amarelo e lamenta, dizendo que não conseguiu ir às compras pois estava muito ocupada.

Olho para ela e apenas suspiro.

Nós dois sabemos que não foi por isso.

Mas fingimos que não, e eu lhe digo que comi no colégio. Minha mãe sorri e diz que fará algo gostoso para eu comer amanhã. Apenas concordo com a cabeça, exercendo meu papel de quem acredita na mentira diária.

A verdade é que ela não tem dinheiro. Não teve ontem e nem terá amanhã. Eu sei que não posso contar com suas promessas, 14 anos de vida me ensinaram isso.

Coloco minha mochila no quarto e finalmente respiro fundo. Meu quarto se tornou o único lugar limpo e decente da casa, o único em que eu me sinto ligeiramente bem. Arrumo minhas coisas e desço para a cozinha, pegando os materiais e começando a limpeza.

No início, era complicado arrumar a casa. Minha mãe nunca me ensinou, então eu tive que aprender na marra, depois que percebi que dependia apenas de mim viver em um chiqueiro ou não.

Ela continuava assistindo o programa, ignorando completamente a minha presença.

Não que eu ligasse. Com o tempo, aprendi a não me importar.

Eu apenas sentia pena dela, e raramente me irritava o fato de ser o adulto da relação. Não a culpava totalmente pela situação, sei que ela sofreu bem mais que eu. Nunca me pediu que cuidasse dela. Assumir o comando das coisas foi natural, era simplesmente o necessário.

16:00 em ponto a campainha tocou. Minha mãe se encolheu no sofá, seus olhos desviaram da TV, encarando a porta. Ela tremia e eu podia ver pânico em seus olhos. O corpo dela já sabia. Eu, já sabia.

Fui até a cozinha e peguei o envelope com um pouco do dinheiro que eu conseguia no meu estágio. Passei por ela e me agachei na sua frente. Seu cabelo longo estava com a tinta desbotando, e era visível as marcas da idade. Inclusive, todas as marcas eram visíveis, até mesmo aquelas de quando tive que fazer um trabalho e não cheguei a tempo em casa.

- Não se preocupe mãe. - digo enquanto afago seus cabelos e tento acalma-lá - Eu estou aqui dessa vez. Não vai acontecer de novo, ele não vai entrar.

Ela apenas me olha, encarando as marcas em seguida. Não me lembro ao certo quantas vezes pedi desculpa por ter me atrasado naquele dia. Eu sabia o que acontecia quando eu me atrasava. Assim como sabia o que acontecia quando eu esquecia de separar o dinheiro.

Quando eu era criança, ela não deixava que eu percebesse. Com o tempo, passou a me tirar de casa durante as tardes, me matriculando num cursinho grátis da prefeitura. Mas como toda mentira tem perna curta, é claro que o cursinho tinha que fechar as portas sem aviso, e me fazer voltar mais cedo pra casa.

Ainda lembro do cheiro. Ainda lembro dos gritos.

Lembro de como ela pedia desculpas por não ter o que oferecer. Eu lembro da mão dele em sua direção.

Foi a primeira agressão que eu vi.

Ele queria dinheiro, mas ela tinha acabado de ficar desempregada e não tinha o que dar a ele. Num ato desesperado, corri até o meu quarto e peguei meu cofrinho com minhas economias. Voltei para a sala e me coloquei em sua frente, impedindo o próximo tapa. A dor em meu rosto não foi nada em comparação com a dor de ver meu pai naquele estado.

Nenhuma criança de 11 anos devia passar por aquilo. Estendi o cofrinho e o mandei ir embora. Ele pegou o dinheiro, nos olhou e simplesmente saiu. Como se apenas estivesse cobrando o que lhe pertencia.

Suspirei, ouvindo a campainha tocar novamente, meu pai não gostava de esperar, isso o deixava nervoso. E sabíamos que não era bom quando ele ficava nervoso.

Abri a porta e lá estava. Suas roupas eram as mesmas, seu velho rosto também. O cheiro continuava igual. Estendi o dinheiro e ele segurou, olhando dentro para conferir. Quase ri com a cena. Eu não iria enganá-lo. Já tinha tentado uma vez e aprendi a lição. Na verdade, minha mãe aprendeu.

- Como você está? - ele diz e eu me surpreendo. Normalmente ele só pega o dinheiro e vai embora. - Provavelmente sente saudade da família reunida não é campeão? O que acha do papai voltar para casa?

Eu o olho e percebo que ele não está sóbrio. Não que seja uma surpresa, ele nunca está. Mas dentro de mim eu queria que ele estivesse.

Queria que suas palavras fossem verdadeiras. Queria dizer que eu sentia falta de ter minha família, falta de ter um pai. Mas eu lembrei que não me adiantava criar esperança. Esse sentimento já não me pertencia mais, ele já não era uma possibilidade. Eu sabia a verdade.

O caos da minha vida não era mais mascarado por uma falsa esperança de mudança, ele era combatido com a aceitação da realidade.

- Apenas volte para o bar. - eu digo e fecho a porta, enquanto o homem que um dia eu chamei de pai, volta para casa.