A VELHA SENHORA

Recolheu o friorento pássaro pousado no beiral da janela. A forte chuva molhou suas penas, impossibilitando-o de voar. Levou-o para dentro. Foi sentar-se na tosca cadeira da sala. Enrolou a ave em um pano para secar-lhe as penas. Feito isso, colocou o pássaro na palma da mão com um punhado de alpiste que ele começou a comer avidamente.

Olhando a voracidade da ave, seu pensamento retornou ao passado, quando na velha Europa ela também fora um pássaro friorento e faminto. Começou a conversar com a ave, contando-lhe os dias e os anos de sofrimento e de muita tristeza.

 

Falou da casa espaçosa onde morava, dos móveis no estilo renascença, do artístico jardim com gatos e cavalos esculpidos com plantas pelo velho jardineiro. De como ela corria entre os verdes animais para escolher um sob o olhar da mãe que, da janela, observava os seus movimentos. Muitas vezes a mãe gritava: - Menina, está na hora do chá! Feliz, corria para comer os biscoitos feitos especialmente para ela. Tinha sempre biscoitos no bolso do avental, bordado com flores coloridas, para dar aos pássaros que povoavam o jardim. Esmagava os biscoitos na mão e ia espalhando pela grama só para ver o bando devorar tudo em questão de segundos. Era feliz.

 

Um dia ouviu, ao longe, um forte estrondo. Perguntou à mãe que barulho era aquele e ela lhe disse que era a guerra. Ficou imaginando o que seria uma guerra. Seria um folguedo novo? Só mais tarde descobriu quando homens estranhos invadiram a casa levando o pai e a mãe. Ela, tremendo de medo, escondera-se no armário da cozinha, onde ficou até ter certeza que não havia ninguém na casa. Então, sentou-se no degrau da escada e chorou. Chorou muito. O velho jardineiro sabendo do acontecido foi até a casa. Quando ela o avistou, correu para ele em desespero. Ele a acolheu. Levou-a para sua casa pobre.

A guerra, com todos os seus malefícios, continuava. O velho jardineiro morreu num dos bombardeios e ela ficou totalmente só. Nas noites de inverno dormia em montes de lixo para se aquecer com papéis velhos e trapos. De dia caminhava desnorteada em busca de alimento. Comia tudo que encontrasse. Disputava com os cães. E a guerra continuava. Seu país estava arrasado. Dos pais, nunca mais ouviu falar.

Vagou entre os escombros. Encontrou outras crianças e todos juntos formaram um bando que saqueava os mortos depois das escaramuças.

 

Foi parar em uma cidade grande e lá conheceu um menino que, mais tarde, seria seu grande amor. A guerra acabou. Ela e o menino cresceram. Amaram-se e desse amor nasceu o primeiro fruto. Mas os amores, nascidos sob a égide da guerra, têm sempre um final dramático. Um dia seu amor saiu para conseguir leite para o menino e não mais voltou. Ela o procurou por toda parte, não o encontrou. Mais tarde soube que fora preso por vadiagem e enviando para uma prisão distante. Sofreu como nunca. Pensou em morrer junto com o filho, mas lembrou-se dos ensinamentos da mãe que sempre dizia: - A vida é o maior tesouro que Deus oferta ao ser humano. Ela, que lutou tanto para conservar a sua, por que extingui-la agora? E o menino? Que culpa lhe cabia pelos acontecimentos? Nenhuma. Orou silenciosamente até que ouviu os gritos de euforia da população:

 

- Os presos voltaram! – Sentiu um alívio. Agora precisava encontrar os pais. Saiu com esse propósito de povoado em povoado, até que um dia, por força da sorte, foi parar numa plantação maçã. Perguntou, disse os nomes dos pais. Ninguém os conhecia. Cabisbaixa, partiu para outro povoado. Chegou a uma plantação de castanhas. Dessa vez não perguntou, limitou-se a andar entre as pessoas olhando os rostos. Foi aí que ela reparou num velho que carpia entre as árvores. Aproximou-se. O homem parecia não vê-la e por uns bons minutos continuou seu lento trabalho, até que ela lhe tocou no ombro. Ficou surpresa e penalizada ao mesmo tempo. Era seu pai. Do homem nobre de porte elegante, sobrara aquela criatura esquelética e curvada. Falou com ele. Não a reconheceu. Então ela começou a cantar uma canção infantil, baixinho, olhando fixamente para o homem. O velho parou de carpir e tremendo disse:

- É a minha menina!

Abraçaram-se chorando muito. A mãe, Deus a tinha levado, disse ele, pois ela não suportara o campo de concentração e a dor de perder a filha.

A velha senhora parou de falar. A chuva havia terminado. Com o pássaro aninhado na mão esquerda e os olhos fixos no espaço, ela libertou a avezinha que lhe trouxera tristes lembranças.

 

24/01/04.

 

(Maria Hilda de J. Alão.)