A lista do Pingo

Minto se lhes digo que vi o Pingo mais de uma vez. Mas que vi, vi. E pra mijactar do fato, sobrevivi e estou aqui. Pingo era o Bernardo Machado, figura carismática e popular nesta Velha Serrana. Era comerciante de vari-utilidades domésticas, com sua loja na praça do jardim central do burgo, lugar de puro charme, sobretudo para os namorados que lá faziam o footing nos fins de semana. Mas nos dias úteis era o Pingo que lá pontificava.

Mas havia mais: era o Pingo inveterado vascultor de nossa história, nossos fados, afinal Pitangui pioneira povoação no Centro Oeste das Minas Gerais nascera nos albores do século XVIII, ou quiçá até um pouco antes, com a febre do ouro que atraiu os mais intrépidos bandeirantes paulistas. E o Pingo muito lia, matutava e questionava, quando o balcão para trás deixava. Aliás lá foi que o vi, da singular vez que conto procês. E foi só pela metade, pois eu teria meus sete anos e sem querer aqui abusar da rima, só o conheci portanto, da cintura para cima.

E foi o Monsenhor Vicente Soares, filho da terra que, em sua magistral coletânea de crônicas eclesiásticas, em que historia e vistoria Pitangui que fez menção a uma intrigante pergunta que lhe fizera o Pingo, sobre figura fulgurantemente obscura de nosso paroquiado: o padre Zabelinha.

E o Monsenhor pesquisou, pesquisou, descobriu e trouxe à baila o perfil de um embusteiro de marca e de tremenda fé: fé no misterioso diamante do Abaeté, cuja fama havia chegado a Portugal e despertado tamanhos comichões. E Zabelinha achou uma forma de embarcar para o Eldorado sob uma patente pretensamente eclesiástica e aqui, sem ver diferença entre vigário e vigarista, sentou praça, cobiçando a Vara paroquial...

Mas fora das quatro linhas eclesiásticas, já no adro da matriz, tinha também o Pingo uma cascata de interesses um tanto mais profanos: vidalheia. E não estava só nesse mister - onde invariavelmente se louva e se deslouva a mulher... - a seu lado se postava algo mais amplo do que a torcida do Flamengo ...sobretudo para perscrutar e ouvir suas sábias confidências e confudências...

E um certo dia - isso me contou o Lúcio, emérito conhecedor dos caminhos e das caminhas do burgo através e atrás da história: a boca pequena, muito se comentava sobre filiações ilegítimas espalhadas pela cidade e povoações circunvizinhas...e se em alguns casos eram óbvios por parecenças indeléveis, já outros, em gradação vária, mantinham-se na mais absoluta e resoluta discrição. E o Pingo era íntimo desses meios-segredos, meios-degredos...

E aí, possivelmente após uma missa, ou antes dela, ou mesmo durante, o Pingo teria proposto ao pai de Lúcio:

- De nossos levantamentos, fiz anotações e já tenho uma lista dos bastardos, que aliás saiu mais longa do que eu supunha. O que é que você acha de a publicarmos...?

O interlocutor se ruborizou - o que não era seu feitio - e, reagindo prontamente, de voz alterada e respiração ofegante protestou, incontinenti:

- Bernardo, tenha pelo menos um pingo de juízo...! Isso aí é mexer numa caixa de marimbondos...Cê ficou foi louco...nem pense numa coisa dessas...a cidade vai pegar o fogo da ira divina que nem Sodoma e Gomorra juntas...Nem ouse mais falar nisso...rasgue e taque fogo nessa lista demoníaca...ela é o ovo da serpente, da cizânia e do apocalipse...

O Pingo chegou a enfiar a mão no bolso interno de seu paletó dominical, baixou a cabeça em sinal de resignação.

E mais não se falou na famigerada lista, que, ao que consta, estaria hoje selada e lacrada na Cápsula do Tempo, que um dos Alcaides da cidade resolveu erigir em local bem visível, e aparentemente, inatingível...

Se tiver os cem anos de sigilo garantidos, como está em moda, estamos todos salvos...senão do purgatório, ao menos do falatório...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 17/05/2022
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