Mestrias inspiradoras

Por longo tempo dediquei-me ao magistério. Para ser exato, cinquenta anos. A primeira vez no longínquo março de 1970, em Salvador, no Ginásio Luiz Viana Neto. Na ocasião, ocupava-me dos números. A derradeira foi também num mês três, no próximo 2020, em Macapá, numa turma de pós graduação. Depois veio a pandemia que levou aos ares, não só o vírus, como a minha vontade de continuar no exercício da docência. Acabei acostumando-me ao ócio, que tento, o quanto posso, tornar criativo, com atividades físicas, musicais e literárias.

Por ter me dedicado à área de formação de professores, acredito ter servido de inspiração a muitos mestres, assim como tantos foram pra mim, conformando o profissional em que me tornei. Encabeça a lista a professora Eunice, para quem declamei pela primeira vez, “minha mestra mora aqui dentro do meu coração...” , num 15 de outubro perdido no tempo. Era atenta aos detalhes e em suas aulas aprendia-se para a vida. Mesmo passados mais de sessenta anos, lembro bem da lição sobre como manusear o dicionário. Nada de ficar passando folha por folha, pois os livros requerem delicadeza no trato. A orientação era por deixar fluir pelo dedo indicador (o fura bolo, para os íntimos) a “cabeça” das páginas, até chegar próximo à palavra procurada e só então abrir e passar as laudas. Podem até parecer “detalhes tão pequenos”, mas outros cuidados, extensivos a outros manuseios, vêm a partir desse ensinamento.

Um pouco mais tarde, já no ginásio, tive outro mestre inspirador, Lauria, de História Geral, na companhia luxuosa de Borges Hermida. Com eles “viajei” bastante pelo encontro dos Rios Tigre e Eufrates, encuquei com o enigma da pirâmide, além de conhecer os subterrâneos das de Quéops, Quéfren e Miquerinos, recheado de detalhes que me deixavam encantado e intrigado com a sua sabedoria. Com o passar dos anos e outros estudos, desvendei muitos desses segredos com as leituras de Will Durant e Leo Huberman.

Escorre o tempo e novamente a História, sempre a dar as suas voltas, volta a me encantar. Desta vez foi a da arte, com a professora Zarinha, do Centro de Cultura. Convidado pelo amigo Chico, lá fui eu de ouvinte me instruir sobre o Quattrocento nos Países Baixos. O deslumbre começou na revisão, enfatizando a observação de detalhes na contemplação de uma obra de arte, seja de uma mosca pousada nas vestes, ou de um alfinete preso em um turbante.

A aula da noite versou sobre o estudo do Tríptico de Mérode, de autoria atribuída a Robert Campin, nos anos mil e quatrocentos. Com essa análise, a confirmação: Deus está nos detalhes e não no “encardido”, como querem alguns. O estudo apurado do quadro, de pequena dimensão, mas com todos os espaços ocupados, instrui-nos para o cuidado na apreciação de outras pinturas, refinando as nossas observações.

Chamou também a atenção a forma como Zarinha dita algumas informações relevantes para registro e fixação dos alunos, reconhecidos pelos nomes, mesmo na penumbra da sala. O anúncio da vírgula, do ponto e vírgula, das aspas, dos parêntesis, sinais de pontuação que me são caros, só reforça o zelo que deve ser dedicado ao que se faz, característica de suas entregas. Assim, novas visões aparecem com as aulas dos grandes mestres, e Zarinha é uma inspiradora para a formação dessa pluralidade de olhares.

Fleal
Enviado por Fleal em 24/05/2022
Reeditado em 24/05/2022
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