Família ê, família ah!

Histórias de famílias são o ó. Quem sabe, do borogodó. Individuais, como são, as comparações são inevitáveis. Por que uma é assim e a outra assado? E daí deriva toda sorte de perguntas que só contribuem para que os cotejamentos sejam evidenciados.

E nessa de comparar, nem Tolstói escapa. Quem nunca viu por aí, mesmo sem ter lido uma linha sequer de Anna Karênina que “todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. É bem assim que está logo no início do livro, servindo de moldura para a infelicidade nascente na casa dos Oblônski, após a revelação de traição contida no “maldito bilhete”.

Mas nem tudo é só guerra e paz. Entremeando há os períodos de calmaria em que as famílias são forjadas, a partir dos seus membros. É assim que Natália Ginzburg vê a sua, a partir do livro Léxico familiar. Aos que estão chegando agora, Ginzburg nasceu numa família judia em Palermo, no início do século XX e é a mãe do historiador Carlo Ginzburg, cujo livro O queijo e os vermes, costuma ser estudado nas melhores escolas do ramo em cursos de graduação e mesmo de pós.

O que é um léxico? É uma espécie de dicionário, contendo os vocábulos de uma língua. Todos, mesmo! Os que carregam em si bênção, maldição, amor, mentira, ódio, os que ferem, os que curam, enfim todos os que constituem o repertório total de palavras existentes numa determinada língua.

Assim é com as famílias. Cada pessoa, com identidade própria, é uma unidade que a constitui. E é o seu jeito peculiar, adicionado ao modo de todos que a compõem, que forma as singularidades familiares. Daí o léxico familiar.

E o que torna tão singular cada uma delas? Exatamente os seus componentes com os seus jeitos e manias. Coisas como “só vou falar uma vez”, ou “você não é todo mundo”, ou ainda, “você foi achada no lixo”, são quase universais entre as parentelas. Outras não são tão comuns assim, como “use essa até acabar, pois é só o que podemos comprar”, mas continuam povoando, entre risos e choros saudosos, muitos corações e mentes.

Ginzburg reconstitui no livro o seu léxico familiar. E fala dos cinco irmãos que, morando em cidades diferentes, não se veem com frequência, mas que basta uma palavra, uma frase, ouvida e repetida infinitamente na infância, para “restabelecer de imediato nossas antigas relações, nossa infância e juventude, ligadas indissoluvelmente a essas frases, a essas palavras”. Como ela diz, ‘essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos, é como os hieróglifos dos egípcios, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos”.

Quem não teve um tio na família que fazia trocadilhos com as palavras? E uma tia que, ainda hoje, diante de certos modos, permite que se diga “isso é a cara de tia Rita”? Ou uma madrinha que para tudo tinha um ditado que ilustrava qualquer situação? Ou irmãos que até hoje complementam em uníssono a frase “pra surdo...” e ainda lembram de uma D. Margarida? É esse o léxico que nos faz reconhecer “uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas”, como diz Ginzburg. E cada um com as suas peculiares histórias.

Fleal
Enviado por Fleal em 31/05/2022
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