CARTAS AO VENTO

Publicado no livro do autor, “Hacasos” – Edição 2016

Embora proibido, sorrateiramente ambulantes percorrem os vagões durante todo o trajeto das linhas férreas vendendo os mais variados produtos, desde balas, biscoitos e salgadinhos de procedências duvidosas até as quinquilharias inúteis. Problema social à parte, se não incomodam diretamente os passageiros, pelo menos, está caracterizada a sonegação de impostos.

Ludinalva é um desses tantos passageiros que se utilizam diariamente do tal meio para ir e voltar do trabalho que fica um dia na Lapa, outros no Tatuapé e no Pari. Não chega a ser velha, mas parece que o tempo judiou demais dela. Morena clara, cabelos presos, vestes simples. Faz faxina, é diarista, está um dia em cada casa do bairro, mas para facilitar segue sempre a rota da malha ferroviária da CTPM que liga a Zona Oeste à Zona Leste. Gente de confiança, quem a conhece afirma. O pouco que recebe divide com a mãe que mora no sertão de Roraima.

Pensa em um dia voltar para lá, a vida aqui é dura e a comunicação com a velha é só através de cartas, não tem computador e muito menos conhece as redes sociais. Ainda, não aprendeu a ler e precisa contar com a boa vontade de outros. Mora só e raramente se encontra com os patrões, demora em saber o que está escrito nas poucas correspondências que recebe lá do seu Estado. Depende também de alguém para escrever algumas linhas e enviar lá para o norte.

Acostumada ao movimento dentro dos trens nunca se incomodou e nunca adquiriu nada dos biscateiros que oferecem de tudo. Isso até o dia em ela ouviu, lá na frente da composição, a voz de uma cigana que dizia ler cartas, despertando seu interesse. Face à distância e ao amontoado de gente, ela não conseguiu ver e nem se aproximar da mulher.

Ouvira algumas pessoas comentarem apenas que se tratava de uma cartomante, que lia o que estava nas cartas. Pensou:

– Hã, hã, cartomante sei lá o que isso. Mas se ela lê cartas deve ser uma pessoa letrada. Esperançosa, projetou que como hoje não tinha como chegar até ela, amanhã iria procurá-la. No dia seguinte, durante a viagem, após uma busca incessante, ela consegue chegar perto da mulher rodeada de gente e, ao se aproximar timidamente pergunta:

− Quanto a senhora cobra pra ler cartas? − Eu cobro o que a moça puder pagar desde que sejam mais de dez reais.

− Virgem santa, é muito caro, mas eu posso pagar.

Enquanto a cigana começa a misturar as cartas do baralho, Ludinalva tira da bolsa um pacote de envelopes com as missivas e as apresenta.

A cartomante se espanta e cai na gargalhada, enquanto que as demais pessoas zombam da pobre coitada que não consegue segurar os papéis que se perdem pelos ares, voando para fora do vagão. Triste, ela não consegue recuperar uma única folha, cabisbaixa segue o seu caminho, mais que a dignidade ferida, o vento levara sua única ponte de relacionamento.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 02/07/2022
Código do texto: T7550874
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