APANHAR AR

APANHAR AR

Vesti o boné; não, enverguei o boné, pior; pus o boné; também não gosto, mas é o que há no meu bengaleiro e na limitada língua portuguesa, que pode não ter limites, mas será apenas para potenciais Camões.

Bem, do que eu não gosto é deste boné com pala para a frente. Há outros como era o do Cristiano Ronaldo com pala para trás, mas o meu é assim… feitios. Pior são os que têm palas dos lados. Limitam o pensamento, à exceção do tapa orelhas que pelo contrário estimula o pensamento isolando-o do ruído mundano e (introspectando-o) (lá estão os limites do português) digo mergulhando-o até à maior profundidade aonde cada um pode chegar em apneia de silêncio.

No fim optei por um boné estilo inglês, aliás não só estilo, mas mesmo com naturalidade britânica como reza o “made in” na etiqueta do forro. Com a tampa de lã tecida em boné, o conforto do meu teto, onde não há calva, mas há ralo cabelo e muita neve, ficou garantido contra frio, sol, chuva fininha e vento lento. Das rajadas sou sujeito e levezinho, mas creio poder resistir aos empurrões do vento se ele não for ciclone, porque nesse caso teria de rastejar ou abraçar um candeeiro, sem amor. O boné em vez de resistir ao sopro de Éolo junta-se a ele, voa sem asas sem rumo, sem sentido e sem dono, e é capaz de comprometer e envergonha até um lord, se acontece ter que se correr decomposto na peugada da peça e seus caprichos curvos. Um risco para senhores de porte nobre.

Mas o dia está lindo o vento moderado soprando de nordeste, e moderado está também o sol. Vamos lá. Não levo destino nem missão, mas como se diz que o caminho se faz caminhando, lá vou eu a caminho de …..não sei, Viseu podia ser, mas fica longe, não tem TGV, mas pensa, nele como eu, e não vê senão rotundas. Sonhar com velocidade não está nos meus planos, atuais, nem nos planos de quem traça as linhas férreas com que nos descosem.

Vou apenas fazer um saudável pequeno passeio pedestre, sem equipamento, passando assim por um vulgar peão, que hesita nas passadeiras por falta de confiança nos compatriotas, embora alguns atravessem sem olhar virando até as costas aos condutores em atitude sobranceira qual toureiro que despreza o perigo. Mas neste caso talvez certos de que a lei lhes garante a razão mesmo no hospital ou cemitério. Os portugueses são assim capazes de dar a vida pela razão. Receio por vezes não estar à altura dos meus compatriotas.

Num passeio assim à deriva o pensamento flutua, ondula, divaga, e distrai-se por vezes de pensar, fica absorto no deleite de uma graça de criança que passa infantil e ingénua, como passa a sua idade e se faz minha amanhã; na nuvem tão branca com forma de um anjo voando em azul, que me faz topar na calçada e in extremis evitar uma queda feia; nos flocos de neve salpicando o chão que são malmequeres explodindo na relva por súbita ordem desta primavera; no aroma da brisa que trás a ideia que além é o mar; no fumo lá longe que é negro de alerta; no melro que é negro também, mas vivo e ladino prende-me o olhar, e me olha também mantendo as distâncias em arisco respeito. Quem diria que temos origem comum e só o tempo nos separou? Darwin disse, e ninguém acreditou. Hoje há já poucas duvidas. São Francisco esse nunca as teve muito antes de Darwin sentiu como nossos irmãos estes melros esquivos, todas as aves do mundo e até lobos e cordeiros. E os dinossauros? São Francisco não os conheceu, nem eu. Foi melhor assim.

Arbogue
Enviado por Arbogue em 02/07/2022
Código do texto: T7550963
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