Nesse universo incalculável de sensações e sentimentos o ser é uma grande aventura. Ser um número que marque a data cronológica do nascimento ou a massa pesada em kilogramas, fora da barriga, numa balança de hospital, porque por dentro, o inquilinismo praticado pelo ser em evidência é uma orquestrada perfeita Daquele arquiteto divino que ao dar um sopro, fez vida.

 

Quando criança queria ser gente grande. O motivo era sair de casa sozinha. Sem ninguém pra reclamar de minhas viagens ao mundo da fantasia que aconteciam em toda parada.

 

Semáforos eram alguns dos meus livros favoritos. As pessoas parecem gostar da sensação de se aventurar na insegurança de um: vai dar tempo. Eu vi muitas pessoas serem atropeladas por elas mesmas, enquanto os carros estavam inertes.

 

Nos carros, motoristas fixados em encurtar o tempo do silêncio. A sintonia do rádio ou a instalação de equipamentos de aúdio que sabotassem os gritos do meninos do sinal, com aqueles sorrisos largos que tomavam a avenida inteira.

 

Nos bancos da praça, os amantes de sorvente brigavam com o tempo. O vento é traiçoeiro quando vê a felicidade dando sopa em espaços públicos urbanos livres. E bolas no chão. Bola pra frente também...

 

Já quis ser guarda de trânsito pra assoprar o apito e todos os carros ficarem imóveis, para vestir aquelas roupas atrativas e cheias de receptividade: posdo te ajudar? Guardas parecem carregadores de cuidados em bagagens leves.

 

Já quis ser o maquinista que acenava toda tarde para nós, alunos que tiveram a alegria de irem caminhando para a escola. A proximidade e a segurança do interior fazem de nós super heróis sem máscaras e indumentárias.

 

E a professora que me ensinou a escrever meu nome? Quis ser D. Conceição até conhecer Isabel; depois Isabel, até conhecer Lídia; depois Lídia, até conhecer Liege; e depois, Rose, Maria e Luísa. A gente tem essa mania de querer ser o que os outros são para nós (assim como o que não foram).

 

Ao menor sinal de acolhida, a nossa essência vai sendo transformada em peças de um quebra-cabeça. Leva tempo montar o quadro, mas vamos de peça em peça até a moldura.

 

Quis ser meu pai, era bonito vê-lo inteiro em seu ofício. Quis aprender os dons que só minha mãe tem: na fila da aptidão artística, quando chegou a minha vez, tinham acabado os recursos. Logo, sobrou a fila do lado, bem curtinha, onde encontrei dois ou três "comedores de livros", lá foi mais fácil fazer amigos.

 

Quis ser aeromoça, piloto de avião. Quis ser dona de casa, imperatriz, duqueza, primeira dama. Mas o mundo é bem seletivo para a nobreza, restou-me a pretenciosa ideia de carregar sobre os ombros a sabedoria dos que me antecederam. Não é o melhor título de grandeza? Se não, ao menos aprendi a ver o mundo com óculos de grau e querer ser um beija-flor. Sim, quis ser uma beija-flor que levasse água para o mar e na infinitude de seu gesto, ficasse a certeza de ter feito o que me cabia.

 

E esse aguçado desejo de ser, veio (e continua vindo) como um novelo de lã, reaproveitado. Vez ou outra arrebenta a linha e dou um nó. Não posso desprezar essas linhas, já usadas, só por ter linhas novas.

 

Tem dias que queria ser aquela menina, curiosa, que queria dominar todos os assuntos e que passava as manhãs assistindo televisão com chocolate quente na mão. Mas ela não cabe mais no sofá da sala, que era um lugar quentinho e aconchegante. Aquela menina, quis ser gente grande e, sem titubear, pouquíssimas vezes, se senta num sofá, televisão não é seu forte. Deixar o sofá de lado é, sem dúvida alguma, a maior mudança da vida.

 

E, nesse intervalo entre o nascer e a despedida, vamos seguindo essa trilha de ilusões que, por algum motivo, nos leva ao que devemos ser, inclusive, aquilo que esperam de nós. Sem nos ater, contudo, que a verdade imbutida e difícil de aceitar é que já somos, e ser não cabe em profissões ou alistamentos, ser é tão profundo que inviabiliza qualquer conceito.

 

Mais vale ser imperfeita num mundo de deuses hipotéticos incapazes de existir para além de si. Isso também é tirar o véu...

 

Ser é uma aventura ligeiramente perigosa em que usamos como pára-quedas tudo que juntamos até pular do avião. E quando a gravidade, inevitável, nos toca, ser é o que nos sustenta no voo livre.

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 04/07/2022
Reeditado em 06/07/2022
Código do texto: T7552638
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