Coincidências?

Bons romances alimentam-se de acontecimentos fortuitos que funcionam como matéria prima para boas histórias. Na vida real não é muito diferente. Mas será que tudo de inusitado que acontece é fruto do acaso? As coincidências imperam?

Além das caminhadas matinais pela orla, costumo fazer meus deslocamentos pela cidade a pé. Aqui tudo é perto e isso me apraz. Numa dessas peregrinações fui interpelado por um jovem, que logo passou a ter nome e idade, Evandro, 28 anos, para saber se, de onde estávamos era distante pra chegar à Rodoviária. E era. Em torno de cinco quilômetros. Como era o meu caminho, além da informação ofereci a companhia até as proximidades do meu destino.

Notei que tinha o corpo todo estabocado, usando inclusive uma tipoia. Curioso que sou, e só em busca de um pezinho pra conversar, fui em busca da razão do estrago. Excedeu-se num final de semana na bebida e, andando de moto, o destino não poderia ter sido outro. No dia em que nos encontramos havia recebido alta do Trauma e, sem dinheiro pra voltar pro interior, dirigia-se à Rodoviária para tentar um transporte alternativo com algum conhecido e chegar em casa.

No trajeto observei que por todo jardim que passávamos ele parava e procurava algo. Era uma torneira pra beber água, tamanha era a sede. A fome também andava perto. A alta hospitalar saia antes do café da manhã e ele foi liberado em jejum. Passamos por um fiteiro e comprei uma garrafa d’água que funcionou como achar um oásis, no melhor dos sonhos dos filmes ambientados no deserto.

Sou conversador por natureza e puxo assunto mesmo sem ter, investigando tudo. É o que faz com que um dos meus netos me ache meio sem noção. Mas a distância era longa, mais de meia hora de bater perna e eu ia ficar olhando os ônibus passarem? E tome interrogatório. O que faz, tem pai, tem mãe, é solteiro, estuda, e logo eu estava sabendo mais dele que ele próprio. Quando garoto até em coral de uma igreja evangélica havia cantado, acompanhando a mãe aos cultos.

Ao se aproximar o meu destino mostrei o caminho a seguir e, sem que pedisse, dei uma grana para que comesse algo. E troquei mais um dedinho de prosa. Pedi que refletisse sobre o nosso encontro. Ele poderia ter solicitado a informação sobre o caminho para a Rodoviária a qualquer pessoa, que certamente responderia de maneira educada e seguiria em frente. Mas foi a mim que ele perguntou. Que além de informar caminhei cerca de uma hora com ele, perguntei sobre a sua vida e, além da água e do almoço, até conselhos eu dei. Encontrar comigo foi acaso, foi coincidência? Ou tem algo maior em tudo isso? Os crentes invocariam o Livro de Provérbios e diriam que “o Senhor faz tudo com um propósito”.

Como não sou de me contentar com pouco, pedi mais. Ao chegar em casa ele deveria dar um abraço em sua mãe e pedir perdão por todos os aperreios que a tinha feito passar. E repensar a vida. Procurar boas companhias, voltar a estudar. Ele ouviu tudo isso e me agradeceu. É provável que nunca mais os nossos caminhos se cruzem e eu fique sem saber se o papo floresceu. Mas me fez lembrar da Parábola do Semeador. Será que tudo o que falei caiu em solo fértil? Vai germinar? É como diz o próprio Evangelho: tem ouvidos para ouvir? Ouça! Fazer bom uso ou não do que ouviu é outra história.

Fleal
Enviado por Fleal em 02/08/2022
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