Um sonho

                         franciscano

 

 

          1. Um dia, eu quis ser frade franciscano, mas não deu. Por isso ou por aquilo, tive que abandonar o seminário. Acho que andei escrevendo sobre isso. Mal não faz, porém, redizer, agradecendo, que minha formação moral e intelectual eu adquiri nos colégios seráficos onde estudei por dez anos, idos de 1940-1950.

               2. Lembro-me demais dos anos passados nos claustros. Vez em quando, recordo minhas aulas de Latim ministradas por um frade alemão chamado Paulo Kleiken. Rigoroso pra chuchu, mas um latinista irretocável. Com ele aprendi, por exemplo, a usar, com precisão,  expressões como  "data venia",  "persona non grata", "pacta sunt servanda", nas minhas contestações e arrazoados como advogado militante. Espressões caídas no esquecimento e até levadas no deboche.

               3. Agora, vejam como são as coisas. Dez anos vivendo a intimidade dos claustros franciscanos, devia, portanto, ao deixá-los, naõ ter esquecido os animados recreios do seminário. Pode parecer esquesito, mas, do que mais me recordo, e ás vezes sentindo falta, é o silêncio claustral. Adorava a quietude que abraçava os claustros em determinados momentos da vida do internato. Até fazer refeições em completa mudez, quando o frade não liberava o bate papo, com o aplaudido e sempre esperado "Benedicamus Domino!".

               4. Depois desse preâmbulo bem seráfico, vou abordar o sonho que me inspirou a escrever esta crônica. Francisco de Assis não era um frade culto. Mas ganhou a simpatia e até a devoção de inúmeros intelectuais, todo mundo sabe disso. Cito alguns: Dante Alighieri (1265-1321), Karl Marx (1818-1883), Agripino Grieco (1888-1973), Vinicius de Moraes (1913-1980), o seu "Lá vai São Francisco/ Pelo caminho/ De pé descalço/ Tão pobrezinho" e segue. Outro amigo do Poverello foi o escritor Josué Montello (1917-2006). Mostro a seguir.

               5. No seu artigo "Meus encontros com São Francisco", Montello, um evangélico, escreveu: "Mas é bom voltar a São Francisco de Assis. Por alguns episódios de minha vida, tenho a consoladora impressão de que este santo, se não me acompanha, pelo menos faz sentir que me protege. Eu, por meu lado, faço subir até ele, nas ocasiões adequadas, os sinais de minha devoção". Simplesmente formidável. Uma maneira dócil de se declarar devoto de um santo. É o inigualável escritor de "Cais da Sagração" e de "Os tambores de São Luís".

               6. Transcrevo, na íntegra, o que colhi de Josué Montello no seu "Diário de Entardecer", ainda sobre o Pobresinho de Assis: == "Sonho curioso o desta madrugada e para o qual não tenho, de pronto, qualquer explicação razoável. 

Dou com Alceu Amoroso Lima, de paletó e gravata, no Largo do Machado, carregando nas espáduas, curvado, um quadro imenso. Trata-se do retrato de um frade franciscano, que identifico. 

Pergunto ao Alceu:

- É o retrato de São Francisco de Assis? Alceu confirma: ele mesmo.

E eu: - E aonde você vai, com São Francisco às costas!

- Vou levá-lo à igreja da Glória.

E eu, meio sério, meio risonho: 

- Que o santo levasse  você à igreja, nada mais natural. O estranho é que seja você que esteja levando o santo".

             7. Sou devoto de Francisco de Assis, desde que nasci. Por isso, concordo firmemente com o inimitável escritor Josué Montello, que declarou, por escrito, ser sempre bom voltar a São Francisco, inda que em sonho, digo eu. 

                  

  

                  

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 09/08/2022
Reeditado em 05/12/2022
Código do texto: T7578804
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