O VALOR PEDAGÓGICO DO DEDÃO

No meado do primeiro semestre, no final dos anos 90, fui convocado para assumir as aulas de geografia da professora Geni. Eram quatro turmas de 6as séries. A professora Geni havia deixado o Cenecista para ir lecionar em sua terra natal no interior do estado da Bahia.

A turma D era a menor de todas as 6as séries em número de alunos. Uma turma com apenas 38 estudantes recém-chegados e repetentes de outras escolas. Nos primeiros dias de aula observei que a freqüência na turma oscilava em torno de 70 a 80% de presença. Com o passar dos dias a freqüência decaiu e ficou estável em torno de 11 alunos. Observei que o fenômeno da ausência dos educandos ocorria também com os outros professores. O registro de faltas dos alunos feitos no “Diário de Classe” pela ex-professora Geni evidenciava o mesmo comportamento dos educandos.

Logo quando iniciei a reger classe nessa turma a freqüência era maior, talvez porque eu fosse novato como professor e eles desejavam me conhecer melhor.

Os professores se queixavam da falta de motivação desses alunos. A coordenação pedagógica procurava ajudar os professores fornecendo materiais didáticos para a aplicação de práticas educativas. A direção fazia convocação aos pais para reunião de “pais e mestres”. No entanto, somente apareciam os pais e responsáveis de alguns alunos assíduos.

A maior parte desses alunos gazeteava as aulas da seguinte maneira: - Muitos iam embora antes das três últimas aulas pulando o muro da escola. Outros em vez de ir para a escola tomavam outro itinerário, dirigindo-se para as praças ou jardins, onde ficavam conversando em grupos e fazendo algazarras. Alguns preferiam a praia onde ficavam jogando bola.

Durante os meus primeiros dias de aulas, quando a freqüência de alunos era em torno de 95% , observei que esses educandos tinham a prática constante de ofender uns aos outros com palavras e gestos obscenos. O comportamento desses alunos me levou a constatar que os gestos obscenos feitos entre eles, com os dedos, a língua e as mãos, irritavam mais do que as palavras indecentes ou palavrões quando um dizia para o outro.

No momento das minhas reflexões perguntei ao meu “EU”: - Como fazer para que esses alunos freqüentem as aulas? O que posso fazer para chamar a atenção deles? Quais as formas de expressões que posso usá-las para mudar o comportamento dessas criaturas?

Veio-me a seguinte resposta:

- Faça uma prática educativa evidenciando a linguagem, os gestos da turma de uma maneira criativa, lúdica, responsável, identificando o comportamento deles. Uma prática pedagógica construída por eles e que seja integrada ao comportamento desses educandos. Conseqüentemente, essa prática será aceito pela turma e você terá sucesso.

- Como posso criar uma prática educativa para mudar o comportamento da turma?

Meu “EU”, assim se expressou:

- Observe entre eles: Quando, habitualmente, um ofende com palavreado indecente a mãe do outro, simplesmente, o ofendido diz: “É a sua!”. E, acabam as ofensas. No entanto, quando algum ofende o outro com gestos obscenos, o ofendido pede a interferência do professor ou tenta agredir o autor da ofensa com promessa de agressão física.

Pensei... Pensei... Perguntei ao meu “EU”: - Como proceder?

- Na sua próxima aula, leve para a sala folhas de cartolina, cola, tesoura, lápis de cores, fita colante, adesivos, folhas de papéis do tamanho grande que dêem para fazer um painel. Com qualquer número de alunos que se encontrar na sala de aula comece a sua prática. Não se preocupe em chamar aluno que esteja fora da sala de aula.

Na sala, você pede a cada um dos alunos para colocar a mão direita na cartolina e contornar com o lápis ou caneta, fazendo um desenho da mão com o pulso. Em seguida, peça para recortarem com tesoura o desenho na cartolina, fazendo um molde da mão direita com o pulso. Depois solicite a cada um para colocar o nome na base do pulso do molde. Feito isso, peça a cada aluno para passar cola na base

do pulso do molde e colocar colado em uma folha de papel grande. Não se esquecer de quando estiver colando os moldes enfileirados ter o cuidado de deixar os espaço vagos para os alunos ausentes, colados em ordem numérica e onomástica. Depois peça para colocar na parede da sala de aula, isto é, criando um painel.

Cada aluno terá um molde de sua mão direita com o número de sala escrito acima do seu nome.Terminado esse trabalho, escreva uma frase na base do painel que chame atenção dos educandos.

- Muito bem meu “EU”! Até ai tudo bem... E como funciona?

- Funciona da seguinte maneira: cada dedo representará um dia da semana. O dedo mínimo ou mindinho representará segunda-feira; o anelar na terça-feira; o médio na quarta-feira; o polegar quinta-feira; e o indicador sexta-feira. Na segunda-feira, por exemplo, quando você chamar o nome do aluno e disser: Antônio. Antônio responderá a presença, levanta-se, vai até o painel, localiza o seu molde e dobra o dedo mindinho do desenho e assim sucessivamente com toda a classe. Na terça-feira, os estudantes presentes, dobram o anelar, tendo o cuidado de deixarem o indicador para dobrarem, somente, às sextas-feiras.

Ao chegar na sala à segunda-feira com o material necessário encontrei 12 alunos. Expliquei a esses o que pretendia fazer e alguns concordaram dizendo: - Que legal professor! Esta uma idéia é genial! É uma boa idéia!

Quando estávamos terminando de confeccionar os moldes, apareceram na porta da sala três alunos demonstrando ar de desconfiança e curiosidade. Dirigi-me a eles, perguntando-os:

- Qual o motivo de vocês não estarem em sala de aula?

- Professor, eu estava na secretaria – respondeu-me:

Bonesso.

- Professor, eu estava no banheiro – disse-me: Antônio

Carlos.

- Professor eu acho que estava na biblioteca –

pronunciou-se Carquejo, sorrindo sarcasticamente.

Convidei-os a entrar na sala de aula e expliquei a eles o que deveriam fazer. E, eles fizeram, demonstrando boa vontade.

Na base do painel escrevi com letra maiúscula em cor azul a seguinte frase: FOMOS CRIADOS PARA SERMOS ALEGRES E NÃO TRISTES.

No dia seguinte ao adentrar na sala de aula, para minha surpresa, percebi que estava lotada, não faltava um único aluno.

Expliquei aos faltosos o que deveriam fazer e a finalidade dos moldes. A maneira como construíam os moldes deixaram -me a impressão de que haviam aprovado a idéia e acharam interessantes.

Na aula seguinte constatei a presença de todos os alunos. No entanto, Caio, Fernando, Adriano e Malaquias, que tinham espírito de liderança, sentados nas cadeiras da frente da turma me disseram:

- Professor, nós e a turma toda estamos pedindo para Senhor mudar a forma de dobrarmos os dedos dos nossos moldes.

- Como assim Malaquias!... Explique-me!

- Caio, explique a ele como combinamos...

- Professor, antes de o senhor chegar, combinamos

que às segundas-feiras continuaremos dobrando o dedo mínimo ou mindinho; o anelar nas terças-feiras; o indicador nas quartas-feiras, em vez das sextas-feiras como o senhor nos ensinou; o polegar as quintas-feiras e o médio as sextas-feiras – fez o gesto obsceno com o dedo médio sorrindo – e disse: - Assim não fica melhor turma?

E a turma em peso respondeu:

- Claro que assim fica melhor...

Olhei para Caio demonstrando que não havia gostado da

brincadeira dele. E ele me disse:

- Professor me desculpe! O senhor me desculpa? Eu não fiz para ofender o senhor! É que todo mundo quer... A voz do povo é a voz de Deus!

- Sim, está desculpado Caio.

Diante da reivindicação unânime da turma eu falei:

-Pessoal a maneira como vocês pretendem, é de um

gesto obsceno conhecido internacionalmente. Não é ético adotarmos este prática em sala de aula. Não fica bem para mim como educador ter um comportamento desse...Adotar ou admitir práticas obscenas em sala de aula. Onde está o respeito aos bons costumes? Onde está o Regimento Escolar? E os ensinamentos domésticos da nossa família? Devemos respeitar a opinião da maioria quando é uma sugestão sadia ou sábia. Finalizando as minhas palavras sobre este assunto, eu tenho a dizer as vocês que a nossa proposta inicial está mantida. Caso vocês façam a prática diferente da combinada ou da que eu lhes ensinei, não assumo qualquer responsabilidade. A responsabilidade é de quem fizer.

Na aula seguinte e nas posteriores constatei, na sala de aula, a presença de todos os alunos. No entanto, a turma toda continuou adotar a maneira como havia reivindicado. E eu sempre pedindo que não fizessem. E a turma toda fazia. Uns me diziam:

- Professor não se meta! Deixe com a gente! O senhor não tem nada com isso...

- Não fique assim com essa cara de tristeza... Veja que o senhor mesmo escreveu no nosso painel: - “Fomos criados para sermos alegres e não tristes” – disse Venâncio.

- Você está certo Venâncio.

Na sexta-feira faltaram apenas dois alunos. Os dois moldes pertencentes a esses alunos foram os únicos que ficaram com os dedos médios sem dobrar, em posição ereta. Foi um comentário geral de graças e piadas na sala.

Uns diziam:

- Pó!... Essa não véio!... Jamais vou deixar meu dedo ficar assim!...

Outros respondiam:

- Não falte!... Assista às aulas!... Pra não ganhar uma dedada!...

Alguns comentavam fazendo o gesto com a mão do molde:

- É feio ficar com o dedo assim!... Eu não quero!... Quem quer?!!! Tome aqui! – Frisando com o dedo médio bem ereto.

Passada algumas semanas observei que haviam diminuído bastantes os gestos obscenos entre os alunos e todos encarando o painel com naturalidade. Com um mês, deixei de fazer uso do painel para o controle da freqüência, usando-o apenas para a colocação de frases, semanalmente.

Os professores das outras disciplinas começaram adotar o mesmo sistema de controle de freqüência. Assim foi resolvido o problema da evasão escolar. Passamos a ter uma freqüência integral. Graças ao valor pedagógico do dedão médio ereto adotado e defendido com afinco pela turma.

EVERALDO CERQUEIRA
Enviado por EVERALDO CERQUEIRA em 02/12/2007
Reeditado em 29/07/2008
Código do texto: T761836