NINGUÉM PODE

NINGUÉM PODE

O que ninguém pode negar é que há razões explicando o inolvidável. O recalcitrante mora na encosta a desabar e não abandona a casa em dia de temporal por medo de que alguém vá lá saquear seus bens inexistentes. O esportista torce por sua equipe mesmo que esteja na pior situação da tabela e, se perde mais uma, a culpa é da arbitragem sempre intencionada em prejudicar o perdedor.

Ninguém pode demover o candidato a acreditar na sua eleição mesmo que todas as pesquisas apontem vários adversários disparados na sua frente. Insiste em prometer o incumprível certo de que os eleitores se deixam comover por práticas mais velhas que a democracia nascida na antiga platônica Grécia. O sol nasce para todos, todavia o poder é destinado a poucos que se empenham em mantê-lo todo tempo possível mesmo que isso lhes subtraia anos de tranqüilidade.

Ninguém pode mudar a Lua Nova em Cheia somente para fazer uma seresta ao luar no aniversário da namorada. E a Estrela d’Alva jamais é visível no zênite a não ser em dia de eclipse total do sol. Há quem tente, e não consegue, contar as estrelas a olho nu no firmamento e imaginar um vôo na velocidade da luz.

O que nunca ninguém pode é alterar a direção do vento somente para antecipar uma chuva ansiosamente aguardada durante longa estiagem. Ainda não nasceu quem impeça uma chuva em dia que gostaria de estar se bronzeando na praia, por mais que perjure as nuvens a que se afastem e dêem liberdade aos raios solares para incidir nas peles esbranquiçadas durante o inverno.

Ninguém pode desfazer a mágoa que ficou quando uma palavra bumerangue foi expressa sem passar pelo crivo da censura mental. As feridas na alma perduram mesmo que desculpas sejam proferidas. A consciência guarda em seus arquivos todas impressões e nem seu dono consegue impedir que se abram em quaisquer momentos, até nos mais indesejáveis.

Ninguém pode forçar a sorte a estar somente de seu lado. Ainda não surgiu um gênio capaz de sempre prever os números das loterias, a ordem de chegada dos cavalinhos em todos os páreos do turfe e tantos outros jogos que a imaginação humana inventa para transferir de forma legal (ou ilegal) altos valores monetários dos muitos para a mão dos poucos sortudos e para os cofres públicos – únicos dispensados de sorte – pois sempre levam a sua fatia nos jogos autorizados.

Ninguém pode viver sem alimento, sem a rotina do dormir e acordar e sem a mínima segurança. É impossível nascer sem concepção, viver sem coração e ser feliz sem emoção. Não existe quem deseje o azar, quem relute em amar e quem deixe sua chance passar sem ao menos tentar a vida melhorar. Os dias e as noites sucedem-se num eterno revezamento, impossível de ser impedido, numa marcação permanente dos ritmos da vida.

Se ninguém pode desfazer o que não foi feito, também é improvável que alguém tente o impraticável. Sem poder desfazer-se da força gravitacional não é possível ao homem levantar vôo sem o auxílio da força da máquina. Incapacitado de desprender-se para longe do solo pela própria força, ele inventa esportes para desafiar os limites.

Ninguém pode sofrer injustiças sem se rebelar pois todo sofrimento corporal leva à insatisfação. O temor de desventuras rege os códigos das precauções. O vigor juvenil desvanece com o elevar da idade, enquanto paralelamente sobe o nível da experiência adquirida e passível de transmissão. Nada se opõe às forças que regem a natureza e tampouco algo impede que os ciclos se cumpram.

Ninguém pode impunemente transgredir as leis naturais. Toda perversão será castigada no próprio transgressor ou nos seus sucessores. São muitos os suscetíveis a pagar pelos desatinos de poucos imprevidentes e irresponsáveis. As dívidas sempre serão pagas mesmo que os credores poucas vezes recebam o que lhes pertence.

Ninguém pode ocultar para sempre muitos segredos. Já é bem difícil ser detentor de um ou dois apenas sem perigo de deixá-los chegar aos ouvidos alheios. O misterioso procura constantemente se desvencilhar das amarras prendedoras e as máscaras têm hora para serem despidas. Sofre bastante quem muito precisa esconder e guardar. A luz infiltra-se pelas frestas mais ínfimas para penetrar na mais fechada escuridão.

Ninguém pode arvorar-se o direito de ser o dono da verdade. Tudo o que parece indiscutível acaba questionável. E todo o insofismável revela-se contestável no rasgar da folhinha. O tempo é o mestre dos mestres e ensina sem parar. Ninguém pode contrapor-lhe argumentos, ele os vence todos, um a um ou em conjunto.

Ninguém pode prescindir da comunicação sem prejuízo nos conhecimentos adquiridos. Quem não lê está ao largo da informação. A leitura pressupõe atitude mental e posição tomada frente ao lido. Ninguém pode negar o valor da palavra escrita sobre a meramente falada. Esta se escoa por si enquanto aquela se mantém pelos séculos afora. Nas páginas de jornais, revistas e na internet avolumam-se as idéias novas do cotidiano, mas, é nos livros que se perenizam os ditos merecedores de imortalidade. Jamais se negará o caráter transitório do homem, porém, é mister afirmar a validade de argumentos e teses que ele deixa escritos nos livros em benefício de todos aqueles que buscam referências no passado para suas reelaborações. Toda idéia nova é baseada em alguma anterior à qual tentará substituir.

Ninguém pode dar-se ao luxo de esquecer o passado para construir o futuro. Seria como negar o presente que, num segundo apenas, também faz parte do antigo. Rotular o antiquado de ultrapassado pode ser tentação de todos os que buscam freneticamente o progresso, mas negar seu valor é no mínimo obstinação absurda. Toda a luta para melhorar o mundo passa pelas experiências advindas do antes. O saber do que já foi sucesso exige pesquisa e esta é fruto de muita leitura.

A ninguém é dado o direito de negar que a cultura está atrelada à leitura. A dança presume música, que se baseia em partitura. O desenho e a pintura exprimem sentimentos que precisam ser interpretados por meio da leitura dos traços, das cores, luminosidades e sombras presentes na constituição das obras artísticas. Esculturas, monumentos e arquitetura são baseados em projetos e plantas cujos códigos se decifram pela habilidade leitora dos artistas.

Então, há uma grande verdade em tudo: ninguém pode afirmar que a escrita não seja revestida de importância. Simplesmente nenhuma palavra pode ser lida se ela não for escrita ou codificada de alguma maneira. Há quem escreva para ensinar, outros querem divertir, alguns fazem do escrever sua arte, mas jamais algo escrito está livre da emoção sentida na hora de grafar a palavra num papel ou no momento em que ela aparece digitada na tela do computador.

O leme do navio, o manche do avião, o volante do carro e o teclado do micro são objetos a que ninguém pode negar o poder que têm na indicação do rumo ao destino que se quer alcançar.

Ninguém pode saber o que o destino reserva a cada um em particular. Nas dúvidas que perpassam as existências está a força motriz do mundo humano. As certezas sucumbem na eterna sucessão das dúvidas geradas.

Se ninguém pode, por que alguém há de querer me demover de expressar por escrito estas palavras que, esta é a dúvida, talvez, alguém venha a ler?