Coisas de fim de ano

Fátima Dannemann

O tempo esquenta no país. Não, nada de mais grave do que as denúncias que sempre acabam em pizza. É apenas o clima. O tempo esquenta porque o verão bate às portas. Dias lindos no hemisfério sul e, na Bahia, o mar anda ainda mais azul. O primeiro verão do resto de nossas vidas. O primeiro verão depois de ACM. O primeiro natal de um shopping high-tech recém-inaugurado. Polêmica a vista numa livraria onde o livro de Christopher Hitchens diz que Deus não é grande e que não foi ele quem criou o homem à sua semelhança, mas exatamente o contrário.

Ávidos por vendas, vendedores sorriem sem esconder o cansaço pelo excesso de trabalho. “Pague com o décimo-terceiro”. Simples. Mas as contas que chegam em janeiro mostram que as loucuras de verão acabam junto com o solstício, aliás, o ultimo dia do prazo para pagamento do salário mais esperado do ano é justamente o primeiro do verão. “Décimo”, para os íntimos, é quem garante o DVD, a máquina de lavar roupa da patroa. Ah, nem chega para tanto. Dá para a entrada. O resto, em 36 meses o que significa que o DVD terá virado sucata e a garantia da máquina terá caducado há dois anos quando a ultima prestação for paga. Mas, são as coisas de fim de ano.

Esquecidos meninos de hospitais para doentes terminais ganham brinquedos. O primeiro ou o ultimo de uma vida. Pessoas carentes fazem fila na porta da escola onde um grupo beneficente distribui cestas básicas. A fome continua nos outros 12 meses do ano. Doenças afligem e matam 365 dias por ano. Quem liga? O verão bate a porta, vamos malhar. Cadê o novo biquine? Você já sabe quem vem pro Festival de Verão? Dia 4 estamos em Itacimirim. Te vejo à noite, na Pracinha de Guarajuba. O ferry-boat, depois da ultima barbeiragem, ficou para trás. Mas, quem liga? A Ilha será sempre a ilha, independente do mês do ano.

E a Bahia, apesar de todos os dramas anda mais bonita. O povo mais feliz. O mar, mais azul. Porque? Quem não tinha dinheiro, continua duro. Nos hospitais, a fila do SUS amedronta. Nas lojas, esquecem o quanto as baianas são “cadeirudas” e cortam roupas tamanho P com etiqueta G e quem quiser que se encolha nelas ou que se recolha em casa. Fim de ano. Deve ser por isso. No Iguatemi, a árvore de natal iluminada muda de cor a cada minuto. Uma menininha já sacou que Papai Noel não pode estar em todos os shoppings ao mesmo tempo e diz que ele é falso. Risos.

Estudantes bronzeados saem da praia para as aulas de recuperação. Ninguém merece, dizem, sobre as notas vermelhas no boletim. E nem lembram ou lamentam as horas perdidas nas praças de fast-food onde rola paquera, algo mais que paquera e talvez algo além das imaginações, quem há de saber o que. Coisas do ano que termina. Procissão da Conceição da Praia, caruru de Santa Bárbara, lavar os olhos com a água de Santa Luzia e depois, vestir branco e ir ao Bonfim na última sexta-feira do ano, porque ser baiano é ser baiano e se Deus não é grande para o Christopher inglês, é hora de chamar “jesus de genésio” e quebrar todas nos ensaios de blocos, bandas, pagodes e grupos de dança de rua.

Fim de ano. O primeiro depois que o Bahia voltou para a segunda divisão num dos piores momentos da história do futebol com mortos e feridos. O último ano da Fonte Nova que não resistiu a irresponsabilidade dos poderosos e desabou matando torcedores no momento de maior alegria dos últimos anos. O tempo esquenta na Bahia. Mesmo assim, madames pegam o avião para perto do deserto e vão “hibernar” nos Emirados Árabes. Hibernar. Porque lá, no hemisfério norte, é inverno e em alguns lugares até cai neve. Apenas o clima. E é esse o clima. Para ser feliz é preciso muito pouco: dias azuis, mar tranqüilo e uma certa brisa no fim da tarde. Coisas de fim de ano. Só isso.

Maria de Fatima Dannemann
Enviado por Maria de Fatima Dannemann em 27/12/2007
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