POST IT - AFETOS SEM MURALHAS
“Todos os dias é um vai e vem, a vida se repete na estação.” (Fernando Brant)
É Primavera em Pequim. A cidade surpreende pela explícita grandiosidade que tudo permeia. Impossível escapar desse lugar comum. Percorrendo as largas avenidas plenas de pessoas a caminhar, a pedalar ou a conduzir transportes de variados tipos, durante todos os dias permaneci com a impressão do primeiro impacto: a sensação de estar não em outra cidade, mas mergulhado em universo onde a cada quadra algo de inusitado e surpreendente poderia surgir.
Por vezes fechava os olhos para dar conta que estava na enigmática China da Cidade Proibida; do Templo do Céu; do Palácio de Verão; das Dinastias Ming, Qing, Tang, Jin, Liao e Song; do sítio arqueológico Zhoukoudian; do monumental Grande Canal Jing-Han; da formidável Grande Muralha; do instigante Exército de Terracota; e da icônica Praça Tiananmen... em Paz Celestial.
A história milenar desfilava diante dos meus olhos cerrados no andar dessa viagem descompromissada, onde cada centena de passos cobre séculos na longa estrada da civilização.
Um mundo real na fronteira do imaginário, fantasia que deveria durar apenas o lapso da sessão de cinema com a deusa Kira, enviada de Zeus para esta minha Xanadu, lugar que eu penetraria através da tela para compartilhar breves êxtases ao lado de Olívia Newton-John e Gene Kelly. Mas não foi o que aflorou dessa imersão incontornável, somente desfeita dias depois quando o Comandante da aeronave anunciou o fechamento das portas e, sem saber, desligou o equipamento da minha sala de projeção nem dando tempo para pudesse perceber se no último frame da película figurou o definitivo “The End”. Parece que não. Espero.
Em especial fiquei com boa impressão dos encontros entre vizinhos para dançar nas ruas, ora ao som de tangos argentinos, ora de ritmos caribenhos, em atos e gestos de mútuos afetos. Um contraponto à metáfora da Grande Muralha, foi o que pensei.
Em Pitangui havia a prática comum de colocar cadeiras nos passeios das casas para conversas entre moradores. Dizia-se que era “para juntos tomar a fresca da tarde”. Na verdade, praticavam amizades. Sem exercitá-las perecem por inanição. As crianças brincavam nas ruas sob o manto protetor daqueles proseios sobre nada e quase tudo, pano de fundo temperado com sinceras risadas que fluíam naturais e incontidas.
Lições de bem-viver a céu aberto.
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(28/05/2004)