POST IT - MINHA QUERIDA REYKJAVÍK
“Seja muito bem-vindo. Se você tem preconceitos de qualquer natureza é um direito seu que respeitamos. Mas agradecemos que não o exerça na Islândia. Gód ferd. Takk.” (Advertência no Aeroporto de Keflavík)
Quando era criança, e tinha entre quatro e seis anos, meu Tio Geraldo, que era representante comercial de empresa holandesa, trouxe de presente para mim uma revista de bordo da KLM. Estampas bonitas, coloridas, papel brilhante. Fiquei maravilhado. Encantei-me!
Durante muito tempo aquelas palavras esquisitas ali impressas me intrigaram. A revista me acompanhava todo o tempo. Como troféu, uma joia rara. Não foram poucas as vezes que dormi com ela, vendo e revendo as imagens de lugares estranhos, lindos, diferentes da cidade e casas que conhecia. Ficava horas “lendo” os textos e tentando entender o que diziam. Aos amigos do grupo escolar inventava histórias sobre o que estava contido naquelas páginas mágicas, creditando – ou debitando – ao Tio Geraldo minhas invencionices. O que dava credibilidade às minhas falas.
A reportagem de capa era sobre a Islândia e sua capital: Reykjavík. Nunca mais me esqueceria desse nome. Descobri com minha professora do curso primário, Dona Maria, que Reykjavík era cidade muito longínqua e que seria quase impossível visitá-la. Seriam necessárias muitas viagens por vários países, o uso de aviões, navios e automóveis, além de bastante dinheiro. Muito difícil mesmo. “Por que não vai para mais pertinho?”, advertia ela. Não me intimidei. Menino teimoso, passei a sonhar com Reykjavík.
Muitas décadas antes do Google fiz várias pesquisas sobre a Islândia e sua capital. Inteirei-me dos costumes, da história, dos hábitos mais prosaicos do seu povo; conheci as festas, estudei sobre a economia, o sistema de governo, as preferências religiosas. Onde quer que fosse buscava notícias sobre Reykjavík. Perdi a conta de quantas vezes indaguei em livrarias sobre aquela cidade, quase sempre recebendo de retorno um “nada consta” além do olhar espantado e curioso do atendente. Na Rússia, em São Petersburgo, na Livraria Singer, vi dois ou três livros ilustrados sobre a Islândia. Eu os folheei, mas não encontrei nada de novo nas figuras, minhas velhas conhecidas. Os textos, nem me arrisquei a olhar com mais atenção!
Quando a Islândia virou manchete mundial à época da recente crise dos Bancos, acompanhei de perto toda a situação. Durante anos quis estar em Reykjavík. Nunca foi uma obsessão, mas um compromisso comigo mesmo para a primeira cidade, diferente da minha Pitangui, que me encantara. “Reykjavík! Onde fica isso? Para que ir tão longe? O que há por lá de tão interessante? Não seria melhor visitar Amsterdam, Paris, Roma, Londres, Montreal?” Essas as respostas que recebia quando informava querer conhecer Reykjavík. Por isso parei de perguntar e de falar sobre o assunto. Também pudera: uma perda de tempo. Jamais encontrei alguém de meu relacionamento que conhecesse Reykjavík.
Não queria ir a Reykjavík para conhecê-la. Isso já o fiz! Somos velhos conhecidos, íntimos à distância. Quero é senti-la, revê-la. Quando meu irmão querido caiu doente falei com ele sobre isso. Lembrou-se da revista e de algumas das minhas histórias. Disse-lhe que faríamos essa viagem juntos. Mas já era tarde. Hoje, dia 22 de junho de 2013, estou em Reykjavík! Levei muito tempo até aqui, mas cheguei a tempo.
No trajeto do aeroporto até a cidade não descolei os olhos da paisagem. Num determinado trecho vi uma placa com a palavra mágica: Reykjavík! Pedi ao motorista que parasse e tomasse uma foto. Quando retornei ao carro, sem conseguir esconder os olhos úmidos, ele me perguntou se estava triste. Respondi que estava era feliz, emocionado, muito alegre por conhecer, rever Reykjavík. Indagou se eu tinha algum parente ou alguém querido na cidade. Não! Negócios? Não! Ficou longo tempo em silêncio.
Antes de chegar ao hotel desculpou-se pela insistência: “O que vinha eu fazer em Reykjavík? Sentir a cidade, respondi. Há mais de 60 anos tive vontade de conhecê-la. Por um dia que fosse. Só isso.” Vi que ele me olhou pelo retrovisor, curioso. Quando me deixou com as malas falou algo como boa sorte e notei que ficou me espiando até que sumisse no hall do Hotel. Não entendeu nada!
Não me pergunto se é bela, feia; se os habitantes são receptivos, tranquilos, apressados. Não me pergunto. Não estou aqui para fazer avaliações de mérito nem para conhecer ou visitar museus, quaisquer ícones turísticos. Só quero estar em Reykjavík, cidade da qual sou cidadão desde os cinco anos de idade por vontade própria, autoconcedida. Eles, meus conterrâneos, não sabem disso! Não importo. Basta-me considerar-me cidadão de Reykjavík.
Pretendo apenas andar a esmo, circular pelas ruelas, sentar-me em um banco de praça, mirar o horizonte, as montanhas, ver o povo, comprar pasta dental na farmácia, tomar um café, fazer lanche, ir ao cinema desta minha cidade. Cumprimentar com um aceno pessoas da minha faixa etária, que poderiam ter sido contemporâneos de escola, amigos de uma infância que eu inventei. Só quero isso! Com serena naturalidade, sem espantos. Caminhar despreocupado. E prestar muita atenção.
Até hoje me surpreendo com a vida. Ainda não me acostumei. Fico tentando. Espero não conseguir. Hoje estou em Reykjavík. Reykjavík é o Everest do meu Himalaia. Agora fico em paz.
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(02/06/2013)