MEMÓRIAS DE INTERNAÇÃO - 20/42 - SUPERA

DIÁRIO DE INTERNAÇÃO (17 de abril de 2025) – 20/42 – HOSPITAL PERSONAL

Hoje cedo recebi a visita da minha irmã Rosana. Estava de passagem para a Europa e, mesmo com o tempo curto, decidiu vir me ver. Fiquei receoso de que perdesse o voo, mas ela chegou cedo e ficamos juntos por quase uma hora. Pouco, talvez, mas suficiente.

Penso que, como eu, todos os meus irmãos foram privados de uma relação afetuosa com nossos pais — sobretudo com nosso pai, sempre tão frio e distante. Claro, essa é a minha percepção; não sei se os outros viveram a mesma coisa. Ainda assim — ou por causa disso — somos coesos. Nunca brigamos, nunca nos ferimos gravemente, e nos apoiamos como adultos. Há famílias em que o amor, exacerbado ou mal compreendido, descamba em disputas. Nós encontramos um pequeno afeto na ausência dele.

Rosana me trouxe também um café da manhã complementar, que teve o efeito colateral, psicológico, de acelerar meu relógio intestinal. Acho que, instintivamente, passei a apressá-la, preocupado com seu embarque. Mas no fim deu tudo certo: ela ainda voltou para a casa da Luana, minha sobrinha, e chegou ao aeroporto com quatro horas de antecedência. Menos mal.

Luana tem uma escola voltada a exercícios para o cérebro. Isso me fez lembrar da leitura que tenho feito de "Quando o corpo diz não", do Gabor Maté, e de um vídeo que assisti com Drauzio Varella, sobre demência senil e Alzheimer. Estima-se que hoje mais de 50 milhões de pessoas convivem com algum tipo de demência no mundo — e esse número tende a dobrar nas próximas décadas, à medida que a expectativa de vida aumenta.

A ciência ainda não oferece certezas sobre as causas. Há hipóteses genéticas, ambientais, alimentares. Mas Gabor Maté é categórico: traumas emocionais e estresse crônico, sobretudo aqueles internalizados desde a infância, contribuem de forma decisiva para o adoecimento neurológico. O corpo, segundo ele, carrega aquilo que a psique não consegue expressar. E o cérebro, nesse sentido, é um órgão da história — de tudo o que foi vivido, mas não digerido.

O Alzheimer, conforme alguns neurologistas apontam, pode ser visto como uma doença da desconexão: o cérebro deixa de acessar memórias, afetos, e até a própria identidade. Há um apagamento que se dá em vida, uma espécie de dissolução da narrativa pessoal. Olho para o senhor Luiz Martinez, com seus olhos vazios fixos na janela, e me pergunto: o que será que ele sente? Como é viver nesse vácuo em que as palavras já não pertencem ao presente?

Hoje ele recebeu visita da neta Yasmin. Ela fez uma chamada de vídeo, mostrou o avô para outra neta, disse algumas palavras gentis e logo se sentou para mexer no celular. Estava ali, fisicamente presente. E quem sou eu para julgar? Vejo só um fragmento da história daquele homem. Não conheço seus afetos nem suas feridas. E ainda assim, desejo — com todas as minhas forças — que meu futuro não seja assim.

Acredito na prevenção. Não só aquela feita com exames e check-ups, mas a que exige hábito, leitura, esforço mental. Xadrez, por exemplo, não é só um jogo: é um exercício de memória, cálculo, reconhecimento de padrões. Aprender outro idioma depois dos 60 é um desafio que alarga a mente. Ler coisas que confrontam nossos preconceitos, que ampliam o vocabulário, que obrigam o cérebro a sair do trilho.

Vi uma metáfora interessante: imagine o cérebro como uma montanha coberta de neve. No início da vida, os trenós — as sinapses — abrem trilhas novas. Com o tempo, os caminhos se tornam viciados. Sempre o mesmo percurso, sempre a mesma descida. O desafio é criar novas trilhas. Mas como?

A medicina começa a investigar com seriedade o uso de psicoativos — como a psilocibina e o MDMA — em contextos terapêuticos. Estudos iniciais mostram que essas substâncias podem estimular a neurogênese, desfazer padrões mentais rígidos e permitir uma “ressignificação” de traumas antigos. Não me importaria de ser cobaia. O que tenho a perder? Talvez a rigidez dos meus próprios trilhos.

Se for para prolongar a vida, que seja com lucidez, com afetos vivos, com sentido. Que os “Superas” da vida — e todos que buscam estimular o cérebro — entrem em cena antes que a cortina se feche. Ainda há tempo de manter acesa a luz do pensamento.