MEMÓRIAS DE INTERNAÇÃO - 42/42 - Entre o Check-Up da Alma e a Cama de Hospital
DIÁRIO DE INTERNAÇÃO (9 de maio de 2025) — 42/42 — Hospital Personal
Finalmente, hoje completo as seis semanas. Quarenta e dois dias de internação no Hospital Personal. Se somados aos dez dias no Hospital Santa Rita, são cinquenta e dois. Cinquenta e dois dias longe da minha casa, dos meus gatos, da luz do sol, do cheiro do mundo lá fora. Cinquenta e dois dias em que só não desmoronei porque tive ao meu lado a presença terna, atenta e incansável da minha amada Cláudia.
Mas não foi só ela. Meu primo Nivaldo, com sua fidelidade, cajuína e bolacha com chocolate, foi a visita mais constante. E Katia, sua namorada, também esteve presente. Vieram também meus amigos de infância, de São Vicente — Reginaldo e Carlinhos — e os do Mackenzie: Rose e Hermes. Valmir, irmão de tantas histórias, apareceu com Martha, sempre risonha. Minhas irmãs, Roseli e Rosana, que me trouxeram mimos. Meu filho Gustavo com Erika. Ana Caroline, minha filha, com Vinícius, que me trouxeram um Ovo de Páscoa delicioso. Minha sobrinha Luiza, que também trouxe chocolate. Minha cunhada Michelle, minha enteada Sophia, Lenorman, amigo das noites de vinho, quando havia vinho, Edenilde, a Zoca. Ana Carolina, amiga do DER, que além de trazer o carinho, trouxe um livro e chocolates. Maria Márcia, também amiga de jornada me trouxe chocolate nota 10. Todos na vibe da Páscoa. Meu irmão Paulo Rogério e meu filho Guilherme, que me ligaram por vídeo. Seu Oscar. Márcia Couto, Roberta, Izumi, Sueli, Andreia. Minha tia Nelcides. Rafael, meu sobrinho. Heroah, Juliana, Clóvis e Adriana, companheiros da Coordenadoria de Pátios. Nelita, amiga do Xadrez, Monick, minha enteada, Elaine. Vinicius, do Templo Nadi. Caio, também do Mackenzie, me enviaram mensagens afetuosas.
Se esqueci alguém, perdoem-me. A memória, neste ponto da estrada, também cansa. Mas cada um de vocês foi fundamental para manter meu bom humor, meu alto astral e a certeza de que sairei daqui melhor do que entrei. Maior do que antes.
Também tenho que mencionar as enfermeiras, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, copeiras, funcionários da limpeza, psicólogos, tanto do Hospital Personal, quanto do Hospital Santa Rita, os companheiros de quarto, Edilmar, Luiz Martinez Alba, Marcos, além dos outros do Hospital Santa Rita e os doutores William, ortopedista e Dr. Felipe, que espero, me dê alta amanhã.
Embora este seja o 42º dia, ainda devo permanecer mais um, talvez dois. Minhas veias, no entanto, já se rebelaram — exaustas, endurecidas, machucadas. E eu também. Preciso ver o sol, ouvir o ronronar dos meus gatos, abraçar minha companheira — não necessariamente nessa ordem. Isso tudo me dá certeza de que o amanhã será um lindo dia.
Ana Carolina me emprestou Rita Lee: Uma Autobiografia. Eu já havia assistido à peça Rita Lee Mora ao Lado, com Mel Lisboa, e também a releitura musical baseada nesse livro. Hermes, meu amigo, disse que era uma perda de tempo. E talvez seja, se olhada como literatura. Mas para quem está confinado a uma cama, o livro tem seu valor: é uma leitura fácil, sem pretensões. Concordo, contudo, que pouco ali é realmente relevante — exceto por um ponto que me fisgou, talvez por estar sob o efeito do outro livro que li neste retiro: Quando o Corpo Diz Não, de Gabor Maté.
Ali, Rita Lee menciona, quase como nota de rodapé, que aos cinco anos foi abusada por um técnico que mexia na máquina de costura da mãe. O homem, covardemente, introduziu o cabo de uma chave de fenda em sua vagina. Mas Rita trata o episódio com aparente leveza. Como se não tivesse importância. Ao contrário, dedica mais emoção ao trauma de ter perdido sua pata de estimação, que virou prato especial preparado por seu pai.
À primeira vista, a explicação parece simples: talvez, vinda de uma família afetuosa, Rita tenha conseguido superar o abuso. Ela mesma diz que “se esqueceu” do que ocorreu, e só sabe que aconteceu porque lhe contaram. Mas não. Eu acredito — como Gabor Maté defende — que o trauma não é o que acontece com você, mas o que acontece dentro de você, como resultado do que aconteceu com você. E isso nunca passa incólume.
A criança abusada pode até esquecer — conscientemente. Mas o corpo se lembra. A dor enterrada no inconsciente, como ensinava Jung, não desaparece. Apenas se transforma. Em comportamentos autodestrutivos, em compulsões, em vícios, em doenças. O corpo expressa aquilo que a mente não foi capaz de elaborar. A menina esquecida se torna a artista inquieta. A compositora genial. A mulher em constante fuga.
Rita experimentou todas as drogas que quis. Escondeu sob a capa do sarcasmo e da liberdade sua dor não nomeada. Criou músicas lindas, alegres, malucas, intensas. Fez rir. Fez dançar. Fez pensar. Mas, ao mesmo tempo, se perdeu no álcool a ponto de quase romper com o amor da sua vida — Roberto de Carvalho. Foi internada diversas vezes. Descreve com humor. Mas por trás da ironia, percebo um pedido de socorro.
Nunca investigou seu inconsciente. Nunca se permitiu mergulhar nas profundezas de si mesma para ressignificar sua história. E talvez isso não seja mesmo para todos. Talvez muitos morram sem nunca ter encarado esse espelho escuro. Mas ao ler aquela biografia, li também uma ausência: a ausência de um reencontro com a dor que moldou toda uma existência.
E talvez eu esteja mesmo viajando na maionese. Como naquela outra especulação — que confesso ainda não abandonei — de que o novo Papa Leão XIV, em sua juventude, possa ter experimentado rituais de Ayahuasca na Amazônia Peruana. Pode parecer absurdo, mas certos olhares revelam mais do que doutrinas.
E então, veio o câncer. Pulmão. Fim da linha. C’est la vie.
Agora quem grita é Marcos, meu companheiro de quarto, pedindo algo que não posso lhe dar. Grita com o pulmão inteiro. Talvez peça socorro também.
Rita Lee inspirou Raul Seixas a compor "Bruxa Amarela". Mas Raul era Raul: roubou a própria música, mudou a letra e transformou em “Check-Up”, que teve duas versões — uma delas censurada. Eis um trecho:
"Acabei de dar um check-up na situação
O que me levou a reler Alice no País das Maravilhas
Já chupei a laranja mecânica e lhe digo mais
Plantei a casca na minha cabeça
Acabei de tomar meu Diempax
Meu Valium 10 e outras pílulas mais
Duas horas da manhã recebo nos peito um Triptanol 25
E vou dormir quase em paz."
E eu, aqui, também vou mudar alguns versos. Daqui a pouco, recebo na guela 100 mg de Amitriptilina e vou dormir quase em paz. Porque a noite promete não deixar vestígios.