DO QUE VOCÊ RI?
Há quem diga que o riso é sempre inocente. Que a piada é apenas uma forma de leveza, um respiro, um alívio na aspereza do mundo. Mas quem ri, ri de quê? E quem ouve a risada, escuta o quê? Há risos que libertam e há risos que esmagam. Há piadas que iluminam e há piadas que ferem. O riso não é neutro: e nunca foi.
Rir é humano, dizem. Talvez seja uma das nossas expressões mais íntimas, mais espontâneas. Rimos do inesperado, do absurdo, do que escapa às regras da lógica. Rimos por nervoso, por alívio, por empatia. O riso pode ser libertação. Mas também pode ser armadilha. E é aí que começa o problema: quando se pretende naturalizar o riso como algo puro, inofensivo, apolítico: como se bastasse rir para não ferir.
A velha máxima latina ridendo castigat mores nos oferece uma chave ética e estética para pensar o humor: “rindo, castigam-se os costumes.” Ou seja: a piada, o riso, o deboche, todos podem ser armas para a crítica social. Pode-se rir para revelar. Para descortinar. Para desmascarar. Pode-se rir contra os poderosos, contra a rigidez das normas, contra a estrutura que oprime. E isso é bonito. Isso é revolucionário. Esse é o riso que incomoda os acomodados, que perturba a ordem dos que fingem que tudo vai bem. Esse é o riso que, em vez de esconder a crítica, a escancara.
Mas o que se vê cada vez mais – principalmente em certos palcos de “humor” contemporâneo – é outro tipo de riso: um riso cúmplice da violência. Um riso disfarçado de sarcasmo que, na verdade, encobre a mais banal das crueldades. Não se trata mais de rir contra, mas de rir de. Rir do outro, do diferente, do que é frágil, do que é minoria. Rir de quem não tem voz, de quem está à margem.
E aí vem a velha desculpa: “é só uma piada.” Como se a forma fosse suficiente para desresponsabilizar o conteúdo. Como se bastasse rir para se absolver. Como se o humor fosse um território sagrado, inviolável, onde tudo é permitido e nada pode ser contestado.
Mas não: não é só uma piada.
Racismo não vira graça porque foi dito com tom engraçado. Machismo não se desfaz porque foi embalado em ironia. Homofobia não se dissolve porque veio seguida de aplausos. Transfobia não se redime com risadas nervosas. Aporofobia – o desprezo aos pobres – não se justifica porque arrancou gargalhadas de quem nunca passou fome. Preconceito linguístico não se apaga por soar “divertido” aos ouvidos de quem ridiculariza o falar do outro. A violência simbólica segue sendo violência: mesmo quando vem com trilha sonora de risos. A violência simbólica segue sendo violência: mesmo quando vem com trilha sonora de gargalhadas.
A liberdade de expressão não é liberdade de opressão. É preciso, sim, defender o direito de rir. Mas é preciso também refletir sobre o que se está promovendo com esse riso. O que se reforça quando se ri de uma mulher vítima de assédio? O que se reproduz quando se faz piada com pessoas trans? O que se normaliza quando o negro é o “personagem engraçado”, o “empregado submisso”, o “corpo exótico”?
Há uma falsa polêmica que costuma surgir quando se propõe essa reflexão: “não se pode mais fazer piada de nada.” Essa frase, repetida com falsa ingenuidade, carrega uma ideia ressentida: o desejo de seguir zombando sem ser questionado. O que está em jogo aqui não é censura. É consciência. É escolha ética.
A piada tem consequências: o riso forma mentalidades, reforça crenças, perpetua estigmas. Uma geração inteira pode aprender a rir de certos corpos e, com isso, aprender a desumanizá-los. O riso pode ser pedagógico: tanto para o bem quanto para o mal.
O humor que quero é aquele que rasga o véu da hipocrisia: aquele que zomba dos autoritarismos, das contradições do sistema, das máscaras do poder. O bom humorista não teme a crítica, não teme ser desconstruído. Ele sabe que seu ofício é perigoso, que lida com a sensibilidade alheia, que mexe com o simbólico. Sabe que seu riso pode curar ou ferir.
Há uma diferença essencial entre o riso que cutuca o status quo e o riso que o protege. Entre a sátira e o escárnio. A sátira é poderosa porque ridiculariza o opressor. Já o escárnio é perverso porque ridiculariza o oprimido. Uma piada que ri da mulher agredida não é humor: é covardia disfarçada. Uma piada que faz rir à custa de um corpo negro não é humor: é racismo com aplauso. Uma piada homofóbica não é humor: é violência com plateia.
Vivemos tempos em que o humor se tornou palco de disputa moral. E que bom que se tornou: porque significa que estamos pensando. Que estamos debatendo. Que estamos tentando entender os limites e as responsabilidades de quem tem voz: e poder.
A crítica ao humor preconceituoso não quer matar o riso. Pelo contrário: quer devolvê-lo ao seu lugar mais nobre. Quer preservar sua força transformadora. Rir com o outro, e não do outro. Rir sobre o mundo, e não para esconder o mundo. Rir como quem denuncia, não como quem perpetua.
É possível rir com inteligência. Rir com sensibilidade. Rir com empatia. Humor não precisa ser cruel para ser engraçado. O que exige esforço não é fazer rir a qualquer custo: é fazer rir com propósito.
A boa piada não precisa humilhar. A boa comédia não precisa reforçar estereótipos. A boa gargalhada pode vir da criatividade, do jogo de linguagem, da observação aguda da vida. Pode rir das contradições humanas sem tornar ninguém menor. Pode mostrar o mundo por outro ângulo: e nesse ângulo, talvez, a gente se veja com mais clareza.
O humor de resistência existe: e é essencial. Ele não serve para perpetuar estigmas, mas para desafiá-los com astúcia e irreverência. É o riso que desnuda o poder, que escancara a hipocrisia, que subverte o silêncio com ironia e lucidez. Esse humor não zomba das vítimas, mas das estruturas que as oprimem. É uma forma de dizer o indizível, de devolver à margem uma voz, ainda que em tom de deboche. Rir, nesse contexto, é ato político: não para anestesiar, mas para despertar. Porque há risos que adormecem consciências, mas há também aqueles que as acordam com estrondo.
Rir é humano, sim: mas o modo como rimos é escolha. E como toda escolha, carrega responsabilidade. Revelamos muito de quem somos pelas coisas que nos fazem rir. O riso revela valores, crenças, afetos e até mesmo crueldades que preferimos ignorar. O que nos diverte diz muito sobre o mundo que ajudamos a construir: ou a destruir. Rimos com o que nos toca, nos indigna ou nos satisfaz. Por isso, que o nosso riso seja farol: nunca escuridão. Que ilumine, questione e transforme, em vez de apagar, oprimir e manter tudo como está.