MEMÓRIAS DE INTERNAÇÃO - 11/28 - Edifício Bandeirantes
DIÁRIO DE INTERNAÇÃO – 11/28 (08 de junho de 2025)
Edifício Bandeirantes
Após uma noite de sono tranquila, acordei bem neste domingo nublado, porém agradável. Fiquei deitado ouvindo músicas, sem pressa. Mais tarde, fiz uma tomografia de tórax — precaução médica para descartar qualquer sinal de pneumonia. À tarde, continuei no modo contemplativo. Não fiz muita coisa, mas algumas fotografias antigas do Litoral Paulista me puxaram de volta à infância, como uma onda discreta, dessas que nos molham os pés desavisadamente.
Meu avô João comprou um apartamento no Edifício Bandeirantes, na Praia Grande — lugar que abriga muitas das minhas memórias mais vívidas. Como na música do Premeditando o Breque, íamos em bando para a praia: primos, tias, uma criançada espremida numa Kombi. Os tios geralmente depois, com outros meios de transporte. No apartamento, um único quarto acolhia todos: beliches, sofás, camas — e corpos empilhados com a leveza dos que não se importam com conforto, desde que estejam juntos.
Quando chovia, o caos virava festa. Jogávamos pingue-pongue, baralho, uns resolviam caça-palavras. Eu preferia os gibis. Meu avô, invariavelmente, contava as histórias da Revolução Constitucionalista — e repetia as mesmas, com aquele gosto pelas cenas heroicas da fome: uma em que encontraram arroz embolorado, tiraram o bolor e comeram assim mesmo. Histórias que pareciam lúdicas, mas hoje soam quase irreais diante de uma infância que cabe inteira numa tela de celular.
Eu tinha medo do mar. Ficava na areia, brincando. Mas era sempre bom voltar, tomar banho e, com aquela fome que só criança tem, saborear a comida do “Vô” — que na verdade era preparada pelas tias.
Lembro quando fiquei com cachumba. Roseli estava doente, todos evitavam chegar perto. Eu fui lá e dei um beijo no rosto dela. Naquela noite, febre de 40 graus, delírios. Os varais improvisados no quarto pareciam assombrações. As roupas penduradas dançavam como espectros. Também ali, no Bandeirantes, tomei meu primeiro porre de rabo-de-galo. Tinha seis anos. Quase entrei em coma alcoólico.
O tempo passou. O apartamento foi vendido. Mas há imóveis que não se desfazem — não enquanto existirem as histórias. As que vivemos ali continuam vivas em mim, entre cheiros de maresia e lembranças de calor humano.
E hoje, já no cair da tarde, recebi uma boa surpresa aqui no hospital: o senhor Zé Paulo voltou. Parece melhor, depois de alguns dias no Semi-Intensivo. Foi bom vê-lo. Há reencontros que têm o poder de estabilizar a alma.