MEMÓRIAS DE INTERNAÇÃO - 23/28 - A VIDA É UM HIATO DA INEXISTÊNCIA
DIÁRIO DE INTERNAÇÃO – 23/28 – (20 de junho de 2025) A vida é um hiato da inexistência
Talvez as principais características da vida sejam o instinto de sobrevivência e a preservação da espécie. O homem de Neandertal surgiu há cerca de 400 mil anos e desenvolveu regras rudimentares de socialização e espiritualidade, visando garantir que cada indivíduo contribuísse para a proteção do outro. O Homo sapiens apareceu há aproximadamente 300 mil anos e aperfeiçoou as relações sociais, demonstrando respeito aos mortos e criando normas de comportamento orientadas por valores sagrados ou divinos.
Mas nenhum avanço verdadeiramente significativo ocorreu até o surgimento da escrita, que permitiu registrar observações, reflexões, experiências e descobertas. Isso se deu há apenas cinco mil anos. E isso é profundamente significativo: a única forma efetiva de transmissão do conhecimento humano decorre do aproveitamento do legado deixado por outras pessoas vivas.
Embora religião e ciência possam coexistir — apesar de tantas vezes a religião ter sabotado o conhecimento —, chegamos ao século XXI com as mesmas dúvidas existenciais e espirituais de sempre. A menos que se desista de procurar e se entregue simplesmente à fé. Como Govinda, personagem de Hermann Hesse no livro Sidarta, que viu no Buda a iluminação e se deu por satisfeito, ao contrário do personagem principal que viveu até o fim procurando respostas.
Mas qual o sentido de uma vida contemplativa? Ou, ao contrário, qual o sentido de uma vida hedonista? Em que medida ambas contribuem para o aperfeiçoamento humano?
Se restringirmos a nossa existência ao período entre o nascimento e a morte, em comparação com o tempo do Universo, ela se torna insignificante. No entanto, a soma dos esforços humanos permitiu, em apenas cinco mil anos, avanços espetaculares que melhoraram significativamente a qualidade de vida. Ainda assim, é pouco. Nossa forma de organização social e de distribuição de riqueza revela que alguns apenas consomem o esforço acumulado por nós e por nossos ancestrais.
Alguns “loucos” passaram a vida inteira olhando para o céu e registrando o que viam. Outros dissecaram corpos para entender o funcionamento da máquina humana. Muitos experimentaram venenos, na esperança de descobrir remédios. As experiências registradas e documentadas são nossa única fonte confiável de conhecimento para transmitir aos descendentes. Isso nos permite conhecer a priori o resultado de uma experiência — isso é ciência. E esse é, para mim, o propósito da vida: plantar uma semente para quem vier depois.
A vida é o hiato da inexistência. E existência como individualidade, pois o propósito de compartilhar e perpetuar a espécie aponta para algo maior, um princípio universal de preservação do sistema como um todo. E isso, para mim, é confortante.
Hoje, mais uma vez, sinto-me leve, sem ansiedade — como deveria ser o estado natural. Fechei os olhos e vi minhas irmãs caminhando sobre os trilhos do trem em Caieiras, e ao fundo algo que, em minha mente, parecia ser uma grande floresta onde íamos colher amoras. Essas lembranças sutis, sem significado aparente, eram o princípio. O princípio de um breve hiato.