BRAÇO É BRAÇO

BRAÇO É BRAÇO I

Nelson Marzullo Tangerini

Quanto vale um braço? Eis a pergunta. “70 mil Réis”?

Em janeiro de 1940, Nestor Tangerini tirou férias para acompanhar o nascimento de seu primeiro filho, Nirton. Em casa, tirava umas dúvidas de Língua Portuguesa de seu cunhado Maurício Marzullo. O telefone tocou na casa vizinha. Um amigo de repartição, dos Correios e Telégrafos, queria falar com Tangerini. A vizinha chamou-o ao telefone. O amigo queria que Tangerini o substituísse no serviço, pois precisava faltar. Tangerini tentou se esquivar e lhe disse:

- Estou de férias. Tirei férias justamente agora, para acompanhar o nascimento do meu filho.

Mas o amigo insistiu.

- É apenas um dia. Eu lhe pago esse dia depois.

Tangerini, sempre solícito, suspendeu a aula, vestiu-se, beijou a esposa, Dinah, e partiu para o trabalho.

Não chegou, porém, ao trabalho. O ônibus em que viajava, colidiu com outro ônibus no Largo de Benfica e ele teve o braço arrancado.

Um jornal do Rio [não conseguimos identificá-lo – quem recortou a notícia, não pôs nome do periódico] relatou o acidente, ainda que com informações totalmente erradas, como sói acontecer em nossa imprensa, uma vez que Tangerini não viajava com o braço esquerdo fora do coletivo:

“Teve o braço arrancado pelo ônibus

Doloroso acidente com conhecido autor teatral

Horrível acidente ocorreu na noite de sábado último no largo de Benfica, esquina da Rua Licínio Cardoso, dele resultando sair gravemente ferido conhecido escritor teatral.

TEVE O BRAÇO ARRANCADO

O escritor, de regresso à sua residência, viajava num ônibus da viação Estrela do Norte, tendo o braço esquerdo fora da janela do carro. Ao chegar àquele local, um outro ônibus, da mesma empresa, que trafegava em sentido contrário, passou de raspão pelo carro em que viajava o escritor e arrancou o braço do inditoso passageiro.

Uma ambulância do Posto de Assistência do Méier compareceu ao local e transportou o ferido diretamente para o Hospital de Pronto Socorro, onde ficou ele internado em estado grave.

A VÍTIMA

A vítima do doloroso golpe foi o Sr. Nestor Tangerini, brasileiro, branco, casado, com 44 anos de idade, funcionário do Departamento Regional dos Correios e Telégrafos e residente à Rua Leopoldina Rego, no 44.

O Sr. Nestor Tangerini é um escritor deveras festejado nos nossos círculos teatrais, sendo autor de numerosas peças de grande sucesso.

A notícia do triste acontecimento causou o mais profundo pesar em toda a cidade”.

O jornal O Botafogo, Rio, 2/3/1940, na página 3, também noticiou o acidente:

“Nestor Tangerini, consagrado escritor e filólogo brasileiro, encontrando-se recolhido a um leito do Hospital de Pronto Socorro, em virtude do desastre de ônibus ocorrido a 20 de janeiro último, do que lhe adveio a perda do braço esquerdo, impossibilitado de ver seu filhinho Nirtinho, nascido a 11 de fevereiro p. p., escreveu , no próprio leito de dor, este lindo soneto, que dirigiu à sua esposa:

À DINAH

Nasceu Nirtinho, o príncipe encantado,

o filhinho de nossa adoração,

o herdeiro de um paupérrimo reinado

que tu enriqueceste de ilusão.

Ante meu braço esquerdo decepado,

com que te apertei muito ao coração,

todo o teu sonho viste derrocado...

mas Nirtinho lhe deu ressurreição!

Dizem que, de tão lindo, não tem par,

e, louco por falar, faz grande alarme.

E eu como anseio de o sentir falar!...

Não para ouvir papai, que é tão comum;

mas, vizinho e curioso, perguntar-me

por que ele tem dois braços e eu só um.”

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é escritor, poeta, compositor, jornalista, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube de Escritores Piracicaba, SP [ clube.escritores@uol.com ] onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.

n.tangerini@uol.com.br / tangerini@oi.com.br

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 06/02/2008
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