Elogio da mentira

Dizer a verdade pode até ser uma virtude, mas virtude maior ainda é não dizer sempre a verdade. Quem nunca fez um elogio por pura cortesia que atire a primeira pedra. Os mais eufemistas dizem que contam apenas mentirinhas brancas, que não fazem mal a ninguém. Mas mentira é mentira. Não importa a cor.

Apesar de não sermos educados para mentir, devíamos, ao menos, sofrer julgamento - já que ninguém está imune a isso - mais condescendente quando contamos uma mentirinha. Sim, porque da mentira ninguém escapa: ou o indivíduo é vítima de uma ou é o propagador dela. O que prova que a mentira está sempre presente em nossas vidas, introjetada em todos nós. O que não é tão condenável porque a verdade não seria uma virtude se não existisse a mentira. Então, se uma depende da outra, elas podem coabitar pacificamente um mesmo corpo, ou melhor, um mesmo conjunto de valores morais e éticos sem, necessariamente, se auto-excluírem.

É possível que o vírus mentiri - cientificamente, a mentira deve receber uma nomenclatura similar a essa - já nos seja transmitido em nossa fase uterina pelo cordão umbilical porque aprendemos a mentir desde cedo. Quando bebês ainda. O choro de manha não é nada menos que indicação contrária à realidade. Isto é, mentira não-dita, mas encenada.

Ao crescermos um pouquinho mais, aprendemos a fingir. Quando percebemos que uma farsa pode nos render mimos, guloseimas, brinquedos... fingimos que aquele resfriadinho besta é bem mais grave do que os adultos podiam supor. Mais premeditado que a manha, fingimento é uma variação da mentira também.

Ao freqüentarmos a escola, aprendemos a mentir em meio coletivo. Afinal, a função social da escola é essa: prepararnos para o convívio com outras pessoas que não nossa família. Enganamos nossos pais sobre nossas faltas e notas; aprendemos a falar mal do coleguinha, fazendo afirmações infundadas; negamos ter "colado" na prova... Enganar, falar mal sem fundamento e negar a verdade são diversas ações denotadas por verbos, simbolizando mentira, o substantivo.

Na adolescência, começamos a namorar, o que significa acreditarmos que já estamos aptos a fazer tipo, disfarçar emoções, esconder ciúme e jurar fidelidade. Realmente, a mentira possui várias facetas.

No momento em que acreditamos ter alcançado a maturidade - lá pelos catorze, quinze anos -, nos tornamos mais ardilosos. É a fase em que queremos nos assumir como adultos para namorar, sair com a galera para curtir a night e, ao mesmo tempo, avocar nossa condição infantil quando os assuntos em pauta são: trabalho, responsabilidade e pagamento de contas. Puro ardil. Ardileza é a mentira combinada com estratagemas, também conhecida por astúcia.

A omissão merece um parágrafo à parte. Essa é a variação da mentira que nos deixa mais confortáveis. É difícil precisar em que época de nossas vidas ela se infiltra, instalando-se. A ausência de ação nos faz acreditar que não temos responsabilidade com o assunto. Os juristas consideram a omissão como "ato ou efeito de não fazer aquilo que moral ou juridicamente se devia fazer". Logo, a ausência de ação (não-ato) se transforma em ato de não fazer, ou seja, não fazemos e fazemos não fazer?!! Que complexo! E tudo isso sob a égide da moralidade, que nos pressiona e controla, e sob a ótica jurídica, com a qual devemos tomar muito cuidado. Enfim, a omissão não é tão irrelevante quanto aparenta. Parece mais uma armadilha. Nada como a mentira pura e simples.

Depois dos 18 anos, a mentira entra na fase adulta e começa a pesar em nossas costas. E, a partir de então, passamos a ser legalmente responsáveis pelo que fazemos e o que dizemos tem importância maximizada. Mas aí já é tarde demais, devido ao uso exagerado e perpetuado no decorrer dos anos, aquela que é conhecida por ter pernas curtas já está arraigada em nossa personalidade e nos acompanha por todos os ambientes. E assim, à medida que avançamos na idade, nos enroscamos mais na envolvente teia da mentira e retrocedemos na prática de dizer a verdade.

Por tudo isso, devemos aprender a conviver da melhor maneira possível com o que não conseguimos modificar. Ou seja, devemos aprender a mentir de forma mais convincente e com menos culpa porque não adianta tentarmos combater o inevitável. Essa prática pode se tornar um ato libertador. Numa perspectiva darwinista, vivem melhor os que logram mentir com consciência tranqüila.

Carmem Lúcia
Enviado por Carmem Lúcia em 29/03/2005
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