FOI EM DIAMANTINA

FOI EM DIAMANTINA...

Nelson Marzullo Tangerini

Há um velho e sábio ditado que diz: “Quem diz o que quer, houve o que não quer”. Minha mãe sabia inúmeros, e tirava-os da manga em situações inusitadas. Ficava deslumbrado com aquilo, e não conseguia entender como uma pessoa podia guardar tantos ditados populares e lança-los nos momentos certos. Lamento muito, até hoje, não ter explorado esse disquete salvo em sua memória.

Em janeiro de 2001, caminhava distraidamente pelo centro histórico de Diamantina, Minas Gerais, tirando fotografias do velho casario, das igrejas barrocas e do famoso Beco do Mota, por onde passaram os ilustres rapazes do Clube da Esquina, Milton Nascimento, Fernando Brant, Toninho Horta, Beto Guedes, Lô Borges, Márcio Borges, entre outros, quando ouvi uma voz me chamar. Era um senhor muito idoso, aparentando mais de 70 anos.

Caminhei em sua direção – talvez por respeito – talvez pela sua maneira de falar. Gosto de ouvir o falar das pessoas de outros estados e do interior.

Mineiro é sempre calado, fechado, mas aquele curioso branquelo aproximou-se de mim e desandou a falar:

- O senhor é turista? – perguntou ele.

- Sim, sou – respondi-lhe.

- De onde? São Paulo?

- Não. Sou do Rio de Janeiro.

- O senhor já escutou falar de Chica da Silva?

- Sim, já ouvi falar. Assisti ao filme e li o livro de João Felício dos Santos.

- Já visitou a casa de Chica?

- Sim. É uma casa muito bonita, com uma vista belíssima para a Serra do Espinhaço. Gostei especialmente do quintal, com suas árvores.

- Já visitou a igreja que João Fernandes mandou construir só para ela?

- Sim, é uma igreja interessante, barroca. Tenho um interesse especial pelo barroco.

- Com ar sarcástico, o velho senhor aproveitou a deixa para prosseguir:

- Chica da Silva foi a maior puta de Diamantina.

- É mesmo? Não sabia...

- Não sei por que dão tanto cartaz a uma vagabunda.

Vendo que havia ali, naquele “dedo de prosa”, um desrespeito à memória de Chica e uma demonstração “clara” de preconceito racial, aproveitei para alfinetar o velho:

- O senhor é de Diamantina?

- Sim – respondeu-me o altivo cidadão diamantinense.

- Toda a sua família é daqui? - prossegui.

- Sim, toda a minha família é daqui. Temos raízes profundas em Diamantina.

- Soube que Chica da Silva teve perto de 20 filhos. Quem sabe o senhor é descendente de algum deles?

Enraivecido, o senhor virou a cara e bateu em retirada resmungando.

Nelson Marzullo, 52 anos, é escritor, poeta, jornalista, fotógrafo, compositor e professor de Língua Portuguesa. É membro do Clube de Escritores Piracicaba, SP.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 08/02/2008
Código do texto: T850439