PINTOR WANGUI

AMIGOS – ULTRAPASSANDO A SEMÂNTICA

Nelson Marzullo Tangerini

Certa vez, em Belo Horizonte, ouvi de minha amiga Carla Regina Mitraud, morta num acidente de carro perto de Três Corações, que “a amizade é mão poderosa, pronta para nos ajudar”. Assegurava-me ela que era um ditado mineiro.

A amizade, temos absoluta certeza disto, é algo que cresce com o tempo; é um edifício que construímos sem pressa de aprontá-lo, “porque devagar se vai ao longe”, ou, ao menos, à longevidade de uma sólida e sincera amizade.

Salomão, em Provérbios, nos diz que “Há amigos que são mais queridos que um irmão”. E há irmãos que são verdadeiros irmãos. Conheço dois: Wanderley Mário Guilherme, o Wangui, e Cecília Guilherme, irmãos, artistas – ele, das cores; ela, da palavra -, ambos de São João Del Rei.

É uma felicidade, para mim, ser amigo dos dois irmãos. Ou melhor, ser irmão dos dois irmãos.

Viajando pelo “Grande Sertão” da palavra amigo, vemos que ela é vasta, é um “mundo mundo vasto mundo”, como diria Drummond. Dela derivamos amizade, amigado, amasiado, amante, entre tantas outras.

O Dicionário Aurélio nos diz, por exemplo, que amigo é aquele “que é ligado a outrem por laços de amizade”.

Os amantes, quando “vivem” a intensidade de “um grande amor” – roubando aí palavras do poetinha Vinícius de Moraes -, são cúmplices de uma amizade, mesmo que ela seja “infinita enquanto dure”.

Os amigados ou amasiados são aqueles que tentam se reencontrar no amor e na amizade, recuperar, muitas vezes, energias perdidas. Após uma separação sofrida e dolorosa, há ainda a fé de que irão fechar a ferida sem deixar qualquer cicatriz. Diz-se deles: “Amigado com fé, casado é”.

O casamento é um pacto de amizade, porque ninguém quer “dormir com o inimigo”.

Costuma-se dizer, também, que “o cão é o melhor amigo homem”. Dizem uns que “preferem ter um cão amigo do que um amigo cão”. A palavra cão, aí, no sentido denotativo, sugere que este amigo seja um sujeito não muito confiável. Ou melhor, “o amigo da onça”.

Poetas e compositores-poetas sabem definir, muito bem, a palavra amigo; vão mais longe, além-texto, além-dicionários, além mar, além sertão, até porque uma amizade não tem limites.

Em Canção Amiga, Drummond preparava uma canção que fizesse “acordar os homens / e adormecer as crianças”. Sim, porque todos nós, irmãos, de todas as nações, devemos construir um mundo de paz duradoura.

Ainda que pessimista, o itabirano também semeava a amizade e a esperança telúricas.

Shelley dizia que “os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”, enquanto Jean Giono dizia que “o poeta deve ser um professor de esperança”.

O poeta português Alexandre O´Neill, outro semeador de esperança, seguindo, talvez, a orientação de Samuel Johnson, - “Para o poeta, nada é inútil” -, assim define a palavra amigo:

“Mal nos conhecemos / Inauguramos a palavra amigo! / Amigo é um sorriso / De boca em boca. / Um olhar bem limpo / Uma casa, mesmo modesta, que se oferece. / Um coração pronto a pulsar / Na nossa mão! / Amigo (recordam-se, vocês aí) / Escrupulosos detritos? / Amigo é contrário de inimigo! / Amigo é o erro corrigido. / Não o erro perseguido, explorado. / É a verdade partilhada, praticada. / Amigo é a solidão derrotada! / Amigo é uma grande tarefa, / Um trabalho sem fim, / Um espaço útil, um tempo fértil, / Amigo vai ser, é já uma grande festa!”

Em Canção da América, dos mineiros Milton Nascimento e Fernando Brant, amigos e irmãos, vemos que, poetas ou não, compositores ou não, todos navegamos na mesma sintonia, no mesmo mar semântico, explorando denotações ou metáforas:

“Amigo é coisa pra se guardar / debaixo de sete chaves / dentro do coração. / Assim falava a canção / que na América ouvi. / Mas quem cantava chorou / ao ver seu amigo partir. / Mas quem ficou, no pensamento voou / com seu canto que o outro lembrou. / E quem voou, no pensamento ficou / com a lembrança que o outro cantou. / / Amigo é coisa pra se guardar / no lado esquerdo do peito. / Mesmo que o tempo e a distância digam não. / Mesmo esquecendo a canção. / O que importa é ouvir / A voz que vem do coração. // Pois seja o que vier, venha o que vier / qualquer dia, amigo, eu volto / a te encontrar. / Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”.

Amigo, portanto, é aquele que ultrapassa a semântica e nos dá “o ombro amigo” nos momentos mais difíceis: na alegria e na dor, de dia, à tarde, à noite, nas altas horas da madrugada, quando lhe suplicamos a poderosa mão à sua porta ou lhe telefonamos, tirando-o da cama, sequiosos de uma palavra amiga ou de socorro. Diz o ditado que “quem tem um amigo, nunca está só”. O amigo nos ajuda a trilhar caminhos. Como bem disse O´Neill, ele pode nos corrigir, sem nos criticar, e até nos iluminar a caminhada com sua sabedoria luminosa.

Minha amiga Carla estava certa. Em Provérbios, encontramos que “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o encontrou, descobriu um tesouro”.

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é professor de Língua Portuguesa, escritor, poeta, jornalista, compositor e fotógrafo. É membro do Clube de Escritores Piracicaba, SP.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 13/02/2008
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