Pequeno ensaio sobre a saudade

Por mais que me acusem de maquiavélica, anti-social ou o que quer que seja, sou meio categórica ao afirmar que maioria da população mundial nem cheira nem fede.

De fato, nosso planetinha encontra-se povoado por uma boa porção de indivíduos rasos, mornos, pessoas a quem o tempo e a convivência fazem a gente se afeiçoar, mas que, no âmago, não têm nada de muito pessoal, original. Pessoas sem grandes atrativos de qualquer ordem, física, intelectual ou moral, mesmo.

Refiro-me à maioria do pessoal nos pontos de ônibus, nas praças, escolas, repartições públicas, a esse povo todo tão inserido no dia-a-dia que, muitas vezes, se esquece de questionar qual o verdadeiro significado da vida e deixa-a passar. Mas segue com a (in)existência, cumprindo suas obrigações e lutando pelo sustento, honesta e pacificamente.

A esses trabalhadores do Brasil, todo o meu respeito, paciência e doses homeopáticas de amor. Mas, por mais que tente, não consigo evitar o meu andar sozinha entre os homens.

Sem querer magoar ninguém, eu, por princípio, curto essências mais fortes. Prefiro alguém que esconda um cadáver no armário, que tenha tara por mistérios, ou que seja corroído de questões existenciais, como as minhas. Alguém inquieto, não contaminado pela “mesmite aguda” que assola 90% da população mundial. Não um doido que queira de qualquer jeito ser diferente, mas um diferente que tenha um jeitinho próprio de pensar e agir a vida, que, sendo botafogo ou flamengo, homem ou mulher, isto ou aquilo, seja, primeiramente, profundo.

Quando encontro essa profundidade numa pessoa, eu me apaixono por ela. Quando, além disso, encontro bondade e retidão de caráter, eu passo a amá-la.

E talvez seja mesmo o destino, a reencarnação, a psicologia ou simplesmente o tipo de mente que eu tenho, mas algumas pessoas entram no nosso coração pela porta da frente, são especiais. Destoam da coisificação do mundo. Com esses, o processo de perda é diferente. Porque, quando muito se quer, muito se sente falta.

Da maioria do mundo, dos colegas, do trocador de ônibus, a gente sente uma leve ausência que não nos incomoda.

Mas dessas pessoas muito especiais, sente-se a perda. O ir de um pedaço de nós que ficou entranhado no outro. A princípio, é superável, mas, a longo prazo, manifesta-se ocasionalmente como um gene recessivo ou uma ferida dolorosa e já cicatrizada, que teima em arder de vez em quando, quando ouvimos a música de que a figura gosta, quando o mundo parece conspirar para que lembremos do que já é muito difícil esquecer.

Sente-se atacado por uma incrível vontade de prestar os favores de sempre, de explicar todas as coisas mal-resolvidas, recuperar a casualidade perdida, de sorrisos, de reconciliação e de que a simples presença, por mágica, apague todos os erros. Nesse delírio, as horas antes bem preenchidas ficam vazias, e a alma oca, pois o coração quer levitar e, como um GPS, voar pelo mundo como que à procura e resgate de alguém muito especial.

Mas a realidade mostra que reconciliação nem sempre é possível, que o coração está preso ao peito por um sistema de veias e artérias, e que o tempo não muda de sentido para que reparemos nossas burradas. Diante do inevitável, só nos resta esperar e não mexer muito, pra não ficar pior.

Mas fica. Permanece aquele eterno buraquinho em algum lugar. Que dói. Mas que, estranhamente, é bem vindo, porque nos lembra alguém especial e querido. E a essa tristeza voluntária, a esse mal que até faz bem, acho que se chama saudade.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 14/12/2005
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