Foi assim que começou...

Como se não desejasse o que lhe acabara de acontecer, nada que demais fosse, caso tão comum a uma criatura viva, qualquer que fosse, da mais pobre à mais rica, da mais desonesta à mais humilde, da criatura feia à bela, da planta ao bicho, do bicho ao homem... Tão absurda era sua revolta para um tolo ato que acomete a todos nós: acordar após dormir, abrir os olhos após fechá-los. Que o fazia aparentemente um resmungão, chato e um ser que precisa usurpar sem razão a chateação nos menores fatos para apagar o tédio. Porém, assim não era. Pois, imersa no particular de sua compreensão, vivia uma rebeldia que ateava fogo na sua razão. Não é aconselhável entender tal rebeldia como a que mora em determinados jovens, que fogem pirados de suas casas para viverem de falsas loucuras e vícios, mas é preciso compreendê-la como uma sensação imponderável, misteriosa, incompreensível... Que nem mesmo a tal criatura decifrava. Era, pois, um sentimento vivo, que respirava por si só, continuamente em processo de crescimento, e que seguia o seguinte refrão: ou eu, ou ele. Então, a cada momento que ficava mais forte, deixava o indivíduo mais fraco e incompreendido. O sujeito então não se sentia mais dentro de si, externava-se, e via-se do lado de fora, como se outra pessoa fosse, como fosse o reflexo do espelho observando a imagem real sendo refletida. O seu desentendimento com simples gestos da realidade, gerava angústia, pois se sentia perdido entre tantos objetos comuns que compõem um quarto. E assim sofria ameaças constantes de qualquer acontecimento que ocorria em qualquer canto do mundo. Ia do barulho do carro do lado de fora ao barulho do silêncio, quando nada acontecia. Assim como, o simples fato de acordar o indignava.

Sentia-se um tolo. Pois que fato mais enganador havia que fechar os olhos e, de repente, no próximo dia, abri-los sem nem haver o seu consentimento? Como um estupro. Todos os dias assim fazia acontecer, um dia após o outros, eternamente. Chegava a noite, e ia se sossegar de olhos fechados, sabendo, com a certeza, de que na manhã seguinte os abriria. Havia ato mais estúpido? Que sentido fazia adormecer? Era como tentar na certeza do erro; como correr desgastantemente em círculos. De tal modo despertava, por surpresa, quando menos esperava encontrava-se de olhos abertos. Então os fechava, forçosamente. Porém sua mente já se mostrava inquieta, irritada e ansiosa, despertada totalmente dos sonhos e pesadelos. Obrigava-se a abri-los novamente, e assim ficava na cama por horas. Deitado, imóvel, respirando... imóvel.

Não dormia para repousar, aliviar-se do cansaço do dia, este significado já havia se perdido há muito tempo em sua mente abafada.

Calor do cão
Enviado por Calor do cão em 06/03/2008
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