Vida de Pobre
Acordou sobressaltado e fixou os olhos remelentos na telha furada do teto do barracão.
Tateou o caixote ao lado da cabeceira a procura do despertador, aproveitando o movimento para espreguiçar-se e despachar definitivamente o sono.
- Minha nossa !!!
O relógio estava inerte e silencioso, com seus ponteiros irresponsáveis insistentemente imóveis na marca das 23:00 h.
Correu até a gaveta da cômoda e revirou atabalhoadamente suas roupas a procura do relógio de pulso. Passava das 7 horas. Tinha que se apressar ou chegaria atrasado ao trabalho.
No caminho, uma moeda de 10 centavos chamou sua atenção. Era o suficiente para jogar no Avestruz. Abaixou-se para apanhá-la e... Droga !!! Os óculos caíram do bolso da camisa. Pronto: por 10 centavos, perderam-se lentes de 30 reais !
Estava na roleta do ônibus procurando desesperadamente pelo cartão eletrônico da passagem.
Atrás dele, uma fila de outros pobres passageiros ia se formando de forma ameaçadora, enquanto o trocador o olhava com um palito no canto da boca e um enorme desdém no olhar desconfiado.
Revirou todos os bolsos e, por fim, desistiu decidindo por descer do ônibus. Não tinha jeito. Tinha mesmo esquecido o danado do cartão em casa... e a turma que vinha atrás já estava ficando nervosa.
- Cumé qui é?
- Qual é?
- Iiiiiiiiihhhh ...
Não havia mais tempo pra tomar o próximo ônibus. Teria que ir de carro.
Chegou esbaforido em sua casa. Ligou a velha Brasília pra ir esquentando e sumiu casa adentro em busca dos documentos.
Voltou com olhos esbugalhados e entrou no carro. Ficara bonito aquele veículo, depois que, usando uma bomba de flit, o pintara daquela cor verde vívida e ofuscante.
Ficou chocado ao olhar para o painel e constatar que o combustível estava abaixo da reserva.
Arrancou pedindo a todos os santos que fizessem o carro chegar ao posto mais próximo.
Deu de cara com um amigo acenando com sinais de demência pedindo que parasse.
Encostou o carro visivelmente contrariado.
- Ô irmão, me quebra um galho. Meu carro furou o pneu e tô sem estepe. Me leva até o borracheiro?
- Sinto muito. Tô atrazado e meu tanque tá sêco... ¿ respondeu ríspido e rápido, com o carro já em movimento.
Ia se aproximando do posto. E o motor começava a engasgar...
Encheu-se de orações mas parecia que todos os santos estavam ocupados pois, faltando uns duzentos metros pra chegar no posto, o carro tossiu, estertorou e finalmente morreu.
Colocou o câmbio no ponto morto, desceu do carro e pôs-se a empurrá-lo com o braço esquerdo em direção ao posto de abastecimento, enquanto com o braço direito, esticado através da janela do veículo, tentava dirigi-lo.
Era um peso enorme e ele estava exaurindo todas as suas forças. De repente, o fardo começou a ficar mais leve. Sentiu um grande alívio e deixou-se relaxar por alguns segundos até observar que o carro estava indo cada vez mais rápido mesmo sem a sua interferência.
Aí, arregalou os olhos e, num esforço sobre-humano, tentou detê-lo. Tarde demais.
O pequeno declive já tinha tomado as rédeas da situação e, ao que tudo indicava, gostava de velocidade.
Ficou estático com as mãos na cintura vendo o carro despencar velozmente ladeira abaixo, até chocar-se com a bomba de gasolina.
Foi um longo tormento discutir prejuízos naquela situação.
Explicou ao dono do estabelecimento que não tinha recursos e, depois de algum tempo de discussão, entregou os documentos e as chaves da Brasília ao queixoso e dirigiu-se com passos lentos para casa.
Chegou em casa com cara de poucos amigos.
- Ué !!! Que foi que aconteceu home? ¿ perguntou a mulher com olhar de surpresa.
Pensou em responder, mas desistiu. Era muita coisa ruim pra contar e ele se sentia indisposto.
Entrou em casa e foi direto a cozinha. Pegou a garrafa de cana, colocou uma dose generosa no copo e virou de uma só vez na goela.
A mulher entrara logo atrás.
- Porque cê levantou tão cedo se hoje é feriado, home?
Foi a primeira vez que ele engasgou com pinga em toda aquela sua pobre vida de pobre.