Máquina de escrever

Quando somos crianças, ainda no primeiro contato com a linguagem, costumamos interpretar denotativamente tudo que nos é dito, o que pode levar a situações engraçadas.

Todo mundo tem uma história para contar a respeito de uma confusão gramatical cometida na infância. Já ouvi casos variados, de criança perguntar qual o feminino do sexo, porque se existe sexo masculino, o feminino deveria ser “sexa”. Ou de achar que todo banco é banco de praça. Ou, por exemplo, de procurar os nós numa cara amarrada.

Quando pequena, eu também tive uma dúvida gramatical. Eu queria saber o que era uma máquina de escrever.

Para uma mente de 7 anos, máquina era uma caixa cheia de botões, luzes e aquelas engrenagens, onde jogavam-se um monte de peças, parafusos e coisas afins para obter um produto montado no final. Será que textos saíam por uma fenda, assim como latas de sardinha, e caminhavam numa esteira? Era o que eu suspeitava, mas não queria acreditar nisso. Preferia uma versão mais fabulosa, mais fantástica. Mas a verdade é que não sabia. Eu, pequena, fazia da origem do livro um dos meus maiores mistérios.

Eu espiava pela janela do escritório de meu tio, poeta amador, na tentativa de visualizar uma caixa metálica, ouvir algum ruído de motor. Observava seu rosto, ao jantar, para ver se estava melado de graxa. Quando ele saía, eu revistava seu bolso, procurando pilhas, baterias.... Nada.

Você poderia me taxar de doida e indagar por que nunca simplesmente, eu abri a porta do escritório e perguntei, com todas as letras, como era máquina de escrever. Ao que eu respondo: calma. Chegamos agora a essa parte, precisamente. Abri a porta imperiosamente e pedi, tímida, para ver “a máquina”.

- Que máquina?

- A sua máquina de escrever. Disseram que você tem uma.

Fui apresentada a uma espécie de caixa compacta, com um rolo onde se prendia papel, uns pontos pretos que subiam e desciam ao toque dos dedos, onde reconheci as 23 letras, minhas amigas recém-descobertas, na época.

E afinal, era aquilo. Que decepção. Um molde de ferro para cada letra, que melava na tinta preta e imprimia um símbolo do papel. Ferro, plástico e tinta, nada mais. E eu esperava uma origem mais nobre para o livro. Achava que seria preciso cortar os cachos de alguma princesa, triturá-los numa bacia mágica qualquer e deles fazer um pó, molhar tudo na água de um rio distante, muito longe, e fazer uma tinta especial.... Algo de mais elegante, mais divertido. Mais difícil.

- Tio, mas o que é que o sr. bota na máquina?

- Papel... Como assim?

- Para fazer sapato, botam couro. Para fazer bolo, botam farinha, açúcar... Mas para fazer as fábulas que o sr. me conta, não pode ser só papel, papel tem o do pão e nunca nenhum dragão pulou de dentro do saco da padaria. Tu tá enrolando. O que coloca aí além de papel?

Ele sorriu, mandou-me brincar e fiquei sem nunca entender. Ainda hoje, pode me matar que não entendo. Apenas procuro e, quando acho, faço. Aprendi gramática, mas nunca aprendi como navegar na língua. Os anos, os livros e as pessoas ensinaram, apenas, alguns pontos cardeais, algumas orientações.

Sei,por exemplo, respeitar a palavra. Aprendi que ela tem poder porque pode modificar vidas. Experimentei procurá-la até a exaustão e experimentei ela vir ao meu encontro de braços abertos. Tornei-me sua escrava, mendiguei pelo pensamento perfeito, aprendi a senti-la, fiquei louca, e amei, muito.

Até descobrir que meu eu de 7 anos estava certo, textos realmente saem de dentro de máquinas, mas essas estão longe de serem suas mães. Embora fruto do movimentar de engrenagens, as palavras bem ditas e regidas fazem o mundo se movimentar.

Meu tio não está comigo. E, mesmo se estivesse, não poderia me ajudar: o processo criativo é um contrato de solidão e, muitas vezes, de dor. Escritor morre e ressuscita mais do que vampiro, escritor enxerga outras freqüências de luz, escuta outros comprimentos de onda, tem anticorpos para saudade e, principalmente, sabe estar sozinho.

Pergunto-me por que reflito sobre tudo isso, por que me imponho mais e mais perguntas sobre o escrever se nem sempre encontro respostas. É que, no meio do processo, por mais que doa, a gente se torna poeta. Aprende que “máquina de escrever” é um nome pretensioso para um monte de ferro, plástico e tinta. Que a literatura habita alguma reentrância da nossa alma onde olhos racionais não podem ver, mas que somos maravilhosos por possuir. E entendemos que, se alguém quiser saber o que é uma máquina de escrever, realmente, de verdade, deve dar uma olhada no espelho. O mais profundo possível.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 01/01/2006
Código do texto: T93174