Primeiro dia de um sonho qualquer

Pronto! Cessaram os fogos. Os mesmos que ecoavam em gritos pelos céus do mundo todo, agora silenciam repousando na espera do que há por vir. As roupas e sapatos novos descansam guardados no armário.

Acordo no 1º de janeiro de um ano qualquer, mas nem tão qualquer assim, só um ano entre tantos outros e olho o mundo procurando pelas diferenças. Sim, certamente encontrarei muitas diferenças, tudo deve ter mudado visto o mês todo ter sido colorido da paz, amor, amizade. Minha vida virou história num mundo de faz-de-conta quando me vi rodeada por uma humanidade toda que só falava de paz. Acredito, como sempre tenho que acreditar, que essa paz é verdadeira e que o amor tão falado dentro de um dezembro também qualquer, só poderá mesmo mudar o mundo por completo.

É primeiro de janeiro desse ano qualquer. Acordo super animada pra ver e sentir o novo mundo de paz e amor que bocas conhecidas ou não, anunciaram por todos os veículos de comunicação. Realmente, o homem é um ser fantástico! Quando decide mudar algo e colocar a boca no trombone, não há o que o impeça. Tv, rádios, jornais, revistas, Internet, tudo e todas as formas pra gritar que o mundo havia mudado, que o amor e a paz tomariam conta de toda nossa história e que essa maravilha de mundo encantado, reino prometido já estava por acontecer, já, agora, nesse primeiro de janeiro mesmo de um ano qualquer.

Bem, tomei meu banho, engoli rapidamente um gole de café e já saí pelas ruas. Precisava sentir o novo mundo que tantas e tantas pessoas haviam me prometido que começaria agora nesse novo ano qualquer.

Lembrando-me de cada palavra, de cada desejo lido e sentido no decorrer de um mês inteirinho de um dezembro qualquer, mal podia esperar pra ver como e com quais novas cores estava tingido o mundo agora.

E fui andando pelas ruas. Tudo estava realmente muito bonito, embora as ruas ainda dormissem, acho que pelo motivo de ter estado acordada até muito tarde. Mesmo assim encontrei um grupo de pessoas e vi que não estavam se abraçando por se amarem, mas aquilo ali era uma briga mesmo. Estranhei porque aquilo não condizia com o primeiro de janeiro de um novo ano qualquer que tantas bocas em tantas línguas havia apregoado com tanta convicção. Ainda assim, afastei-me pensativa achando que só aquele pequeno grupo de pessoas não havia entendido as mensagens recebidas naquele dezembro qualquer avisando que brigas não correspondiam ao forte desejo da paz entoado por toda a humanidade.

Continuei meus passos ainda na esperanças do reconhecimento do novo mundo que com certeza havia nascido naquele primeiro de janeiro de um ano qualquer.

Busquei pela paz e pelo amor e encontrei outro grupo de pessoas. Essas não estavam brigando, mas sentadas na rua dividindo um pequeno pão entre oito crianças desnutridas, mal vestidas e sem presentes de Papai Noel. Notoriamente aquelas pessoas não estavam no contexto do mundo inteiro quando os gritos de solidariedade ecoaram nos céus pintando nuvens de esperanças e vida. Vai ver eles estavam escondidos em algum lugar qualquer naquele dezembro qualquer onde a solidariedade tomou conta de toda raça humana. Também, ninguém é perfeito... Fazer o que se aquela família não se vestiu da esperança na hora exata onde palavras de amor revestiam os espíritos do mundo...

Bem, continuei com meus passos em busca do novo qualquer daquele ano qualquer. Afinal, algo novo haveria de achar. As pessoas não se imobilizariam por tanto tempo em prol de algo que jamais aconteceria. Decididamente não! Ninguém perderia tempo e palavras em algo que não tivesse fundamento, em algo vazio. Eu acredito no ser humano! Acredito no poder de renovação da raça humana. Está aí, isso me deu forças e ânimo pra continuar procurando o novo ano qualquer que foi tão prometido naquele mês qualquer, afinal, já era o primeiro dia do mês de janeiro e aquele ano qualquer prometia mudanças. Sentia ainda em mim a força das palavras e do tal espírito natalino.

Quando vi já estava na frente de uma banca de jornais. Parei e olhei as notícias num dos principais jornais da cidade. Algo devia estar errado, ou aquele não era, não podia ser o jornal daquele primeiro dia de janeiro daquele ano qualquer. Não! Ali eu lia todas as desgraças e catástrofes que habitualmente se lê em um jornal. Mortes, assaltos, aumento de preços, desempregos, guerras... Já não estava entendendo mais nada. O mundo não poderia viver tamanha mentira... Não! E os sonhos? E a esperança? E o amor vestido de paz? E todas as palavras e abraços demonstrando amor e solidariedade na noite anterior, naquele mês inteirinho que vivemos? Enquanto buscava respostas pra tudo aquilo que via e pelo que procurava sem achar, pararam dois carros no meio da rua ao meu lado onde duas mulheres quase desceram pra se pegar em tapas. Discutiam, gritavam, xingavam-se... Olhei pra elas e pensei nos abraços e votos, nos cartões, nas mensagens enviadas no decorrer de todo aquele dezembro qualquer e me perguntei onde estavam minhas respostas...

Naquela manhã qualquer de um ano qualquer, aquelas mulheres brigavam por uma vaga de estacionamento; os jornais noticiavam as desgraças de sempre; uma família dividia um pão velho; um grupo de jovens brigavam trocando socos e pontapés...

Voltei pra casa e enquanto tomava meu banho, cheguei à conclusão de que tudo continuava como antes. O mundo não havia mudado em nada, talvez aquele fosse apenas o primeiro dia de um janeiro qualquer, de um ano qualquer e as mudanças que eu esperava encontrar, talvez ainda estivessem perdidas nos sonhos e ilusões de um tempo qualquer... De um amor qualquer... De uma raça qualquer...

Aisha
Enviado por Aisha em 02/01/2006
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