Sem lembranças

Ele não lembra mais de mim.

Ele se esqueceu quando entreguei panfletos e carreguei seu nome numa bandeira.

Bati em diversas portas pedindo apoio para sua candidatura. Militei demasiadamente. Comi lanches vagabundos durante dias e perdi meu único tênis.

No dia decisivo, fui um dos primeiros a ver sua foto na máquina. Fui esculachado pela polícia, na frente de dezenas de pessoas, por estar fazendo boca de urna.

E ele não lembra mais de mim.

Dois anos se passaram. Continuo no sufoco.

Acordo cedo, tomo um café ralo e saio de cabeça baixa, procurando latinhas cidade á fora.

Minha mãe trança um cabelo aqui e costura uma roupa ali.

Quando o técnico do time do futebol de várzea traz os uniformes para ela lavar, é sinal que Deus lembrou da gente.

E ele?

Ele não lembra mais de mim.

Sempre esteve por aqui mas o poder é tarefa e ele, por sua vez, se tornou um grande tarefeiro.

O seu transporte agora é avião fretado, quando não, desfila de importado.

E eu, não passo mais debaixo da catraca, cresci, entro pela porta de trás.

Eu visto a miséria e ele, a ostentação.

Ontem fumava cigarro, hoje desfruta de charutos cubanos.

Ele não lembra mais de mim.

Fui preservativo. Meteu-me nas entranhas do povo, e depois de ejacular, me descartou e foi curtir a sensação.

Hoje se veste com malhas e algodão, casimira e sedas italianas. Suas gravatas são da galeria Hernés, de Paris.

Come nomes estranhos, uns vindo do mar, outros dos grandes frigoríficos.

O carteado entre amigos foi substituído por cassinos internacionais.

Ele não lembra mais de mim.

Algum tempo atrás, foi estrategista e filósofo, até profeta, mais um profeta mentiroso.

O tempo vai passar, e ele terá duas, três, ou mais contas bancárias.

Vai adquirir muitos conhecimentos na área em que atua, e na próxima vez, talvez não precise mais de mim. Irá pagar para o mais renomado dos marketeiros, a fim de abocanhar mais e mais votos.

É, e furtará cada vez com maior perfeição as esperanças do povo que insiste em elegê-lo.

Até quando?

Até que existam pessoas como eu que botam fé no cara, enquanto ele, bem ele jamais se lembrará de mim.

Ademiro Alves (Sacolinha)

Criador do projeto cultural

Literatura no Brasil

Sacolinha
Enviado por Sacolinha em 05/01/2006
Código do texto: T94756