Midaí

- Midaí!

- Midaí!

- Midaí!

Os gritos pareceram, a princípio, vir de longe, mas vinham de onde eu estava mesmo. Parado, perto da última banca de peixes, admirava o arranjo bem feito de lagostas, lagostins, vieiras e camarões, enquanto comia um pedaço de queijo de coalho no espeto, recém-tirado da chapa, matando uma vontade que se arrastava há tempos. Gostoso, queijo de coalho na chapa é uma comida danada de boa, inda mais pra quem, como eu, é viciado em queijos.

Olhei pra baixo, era de lá que vinham os gritos. E, agora, um toque na minha perna. Abaixo ainda da linha da minha cintura, uma pequena criatura de cabelos acastanhados, ondulados, acho que naturalmente encaracolados como a irmã do Charlie Brown, olhava pra mim com dois grandes olhos escuros. Uma das mãos tinha o indicador apontando para o meu queijo de coalho na chapa. A outra mão, e mais o bracinho, agarrava, envolvia, até um pouco abraçava a minha perna. Ela queria o meu queijo de coalho na chapa.

Pensei em dizer-lhe “calma, vamos lá na barraca que eu vou te comprar um”, mas não tive chance. Lá veio outro “midaí”, tão gritado, agudo e aflito como os outros e não tive jeito. Sua urgência era muito maior que a minha vontade de insistir no que era melhor pra ela. Melhor pra ela? Talvez não, talvez o melhor pra ela fosse mesmo receber meu pedaço de queijo de coalho naquele mesmo momento, já semi-comido, semi-saboreado. Mas, como era um pedaço grande – como sempre, fui criterioso na minha escolha – ainda tinha bastante, principalmente considerando o tamanho de seu estômago. Mas talvez não o tamanho de sua vontade ou de sua fome. Ou de ambos.

Dei-lhe meu queijo de coalho.

Pegou-o, quase arrancando da minha mão, virou-se e foi embora, comendo. Imagino que satisfeita. Nenhuma outra palavra, nenhum outro gesto, apenas o de pegar e levar à boca. Uma criaturinha muito econômica, tanto nas palavras como nos gestos.

Afastando-se, pude observá-la melhor. Além de pequena, reparei que estava bem vestidinha. Camiseta, calça jeans e um tênis novo, colorido, desses modelinhos bem simples que a gente vê nas barraquinhas dos camelôs. O que não era novo, de jeito nenhum, eram seus olhos, era o seu olhar. Fiquei com a impressão de um olhar velho e duro. Espero que isso seja só literatice. Durou pouco mais que uma fração de segundo, mas seu olhar está guardado em minha memória. Com ou sem literatice. Fiquei olhando-a se afastar, comendo o agora seu queijo de coalho na chapa. Em volta, montes de pessoas passando, a classe média fazendo sua compra semanal, aporrinhada, contando os reais e se irritando com os preços, sempre errada a classe média, sempre se irritando com a coisa errada. Ninguém reparou, ninguém tinha ouvido os gritos, “midaí” era uma coisa só minha.

Fiquei pensando em voltar pra barraca e comprar outro pedaço de queijo de coalho, talvez até mais derretido, mais gostoso. Mas não valia mais a pena. Minha vontade tinha ido embora, junto com a criaturinha.

E assim terminou minha manhã de um sábado na grande feira do Ceasa, onde parece estar toda a comida do mundo. De todas as cores de todas as comidas de todas as bancas, o castanho-escuro dos olhos da menininha é a que até hoje me acompanha.

Emerson Gonçalves
Enviado por Emerson Gonçalves em 06/01/2006
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