Boa Noite, Borel

Boa Noite, Borel

Posted by Renato on Mar 29, '08 10:50 AM for everyone

O carinho que recebi de Mônica ao sair da operação, em algum momento do caminho entre o centro cirúrgico e a UTI, trouxe consigo o que para mim – ainda meio dopado, apenas relando a consciência – parecia uma sentença de morte.

Ouvia sua voz doce me explicando que os três dias de intensas dores abdominais estavam agora esclarecidos, que eu sofrera um infarto êntero-mesentérico, mas estava “tudo bem”; haviam ressecado algumas alças intestinais e eu ficaria bem; que eu estava com um cateter na subclávia (“do jeitinho que você gosta de fazer para dar conforto aos seus pacientes”) e que – graças a Deus – estava tudo bem.

E realmente estava - na medida do possível. A dor era suportável, a imobilidade forçada do pós-operatório imediato era melhor do que a dor imobilizante dos últimos dias e até a rotina da madrugada na UTI, com enfermeiros indo e vindo ocasionalmente pelo corredor, ajudava a passar o tempo de uma noite insone e meio bêbada.

Tinha sede e tinha medo, quando a consciência começou a voltar. “Infarto êntero-mesentérico? Isso é quase noventa por cento de mortalidade: eu vou morrer!”, pensava enquanto o paciente, pouco a pouco, se deixava dominar pelo médico - que tentara ficar alheio a tudo até então. “Sem contar que é uma morte horrível, trombo para tudo que é lado... Pelo menos vai ser rápida, amorte - a maioria morre as primeiras 48 horas...”

Tinha sede e não queria morrer com sede, queria água mesmo sabendo não poder, só porque não queria morrer com sede...

Mas o tempo sempre passa, foi-se a noite, veio o dia e com ele a plantonista, que me contou terem retirado somente um metro de intestino. “Um metro, só? Para infarto está bom, né, talvez eu não morra...”, pensava. Depois veio a Mônica, e o Marcelinho, e algum dos cirurgiões - que logo me explicou tratar-se de um infarto venoso, não do arterial bem bravo que mata quase todo mundo, e patati, patatá, não ouvia mais nada porque isso significava que, agora, eu não iria mais morrer. Este subtipo da doença só mata um em cada quatro, e acho que me safei.

Uns dias depois o morro erguer-se-ia imponente em frente às minhas novas janelas, no quarto novo – o segundo depois da alta da UTI. Ouviríamos o funk comendo solto lá em baixo em algumas noites, um ou outro estampido surdo ecoando na amplidão quase toda hora, e as rajadas inconfundíveis da noite carioca com freqüência. Bem mais tarde, degustando um picolé de tangerina que o Gordo me trouxera, no janelão do banheiro, é que fui me situar: “eu acho que este aqui é o Borel, e ali do corredor o que vemos é a Formiga”. Nem sei se ele estava certo, acho que sim, mas aquele morro ali em frente, com suas luzes infinitas na noite e o vapor quente que se volatilizava nas tardes suarentas, junto com a visão longínqua dos pátios do hospital lá em baixo, formaram uma imagem do mundo que havia lá fora, para o qual eu ansiava tanto voltar.

Engraçado é que eu costumava dizer que se soubéssemos o que muitos dias nos reservam, nem sairíamos da cama. Imagina se eu soubesse o que aquela semana toda me reservaria... talvez nem tivesse saído de Ponta Grossa. Imagina? Férias no Rio depois de dezoito meses de labuta interminável, sem direito a dublê. Férias no Rio para rever meus meninos mais velhos, para rever os amigos, para ir ao Zôo com o Thomas (o único passeio que acabaríamos fazendo), ao shopping e à praia. Férias no Rio entre a vida e a morte, e ressurreição no décimo nono andar do hospital em frente ao Morro do Borel.

Em algum momento vi a Dra. Grey – que do seriado que leva sua alcunha eu acho a personagem mais insuportável, mas, vá lá – falar no seriado da tevê que aquele momento em que descobrimos que NÃO VAMOS MORRER é insubstituível, de tão especial. Nele somos onipotentes, a vida nos parece novamente simples, temos as respostas para corrigir todos os erros. Não podemos deixar este momento passar! - dizia ela, e eu acenei em concordância.

Outro dia minha sogra me perguntou se, durante aquelas horas em que eu achei que iria morrer, eu havia sentido medo. Disse-lhe que não, que durou tão pouco tempo que eu não consegui vencer a fase da negação, hehehe. Estava calmo e conformado – se fosse para acontecer, com aquele diagnóstico, aconteceria de qualquer forma e não havia nada que alguém pudesse fazer – mas ainda esperava acordar do pesadelo, aquilo não poderia nunca estar acontecendo comigo.

Já me perguntaram também se eu mudei como médico, depois de me ver “do lado de lá”. É claro que sim! Mais humano? – replicaram. Como saberei? Acho que sim, mas não só isso, não tão simples: ali na beira do leito do paciente, serei outro, mas não só outro médico, outro ser humano. Se melhor, ou pior, não sei, apenas outro que o tempo irá revelar.

Parou de fumar? Só se eu fosse um idiota que não o faria. Passei pelo pior (a síndrome de abstinência, que me pegou de jeito da outra vez em que rompi com o tabaco) sedado e com a alma ferida de outras dores, nos dias que antecederam a operação. Mas a família teme, é claro, sabe que o cigarro foi cúmplice da trombofilia que ainda investigamos na gênese da malfadada trombose.

Tudo bem, como ouvi de um amigo cardiologista, ainda bem que o que entupiu foram as tripas, os outros possíveis órgãos trariam conseqüências mais nefastas: coração, pulmões, cérebro ou mesmo as pernas, indispensáveis para um cirurgião.

“Você precisa se cuidar melhor”, dizem muitos, horrorizados com o que aconteceu comigo, “coitadinho-tão-jovem” e já quase morreu com uma doença de velho; e tome críticas ao meu peso e ao meu so called sedentarismo, como se fosse fácil viver diferente ou achar tempo para ginástica quando se tem que botar comida na mesa. Mas não os culpo. Se os cinqüenta são os novos trinta (anos) das peruas da sociedade, o gordo é o novo negro ou aidético, sempre criticado e visto como culpado por suas mazelas. Vingar-me-ei quando chegar aos oitenta ou noventa quilos, OK, ou quando a ciência provar que não somos gordos só porque queremos, há muito mais em jogo.

Por fim esvai-me em m*** por muitos dias antes de levar a sério a recomendação de meu médico: elixir paregórico a cada evacuação diarréica. Não quis fazer, não acreditei, é tintura de ópio (!), um remédio muito antigo, tem gente que acha que não serve para nada, vai piorar a diarréia, etc, etc. Curou-me, ou quase, anteontem. Obrigado, Dr. Zé Carlos. Desculpe a teimosia.

A barriga está bonita que só, parece que ganhei mais uma bunda. A cicatriz é mediana, de cima para baixo atravessando o umbigo, e repuxa como... um tecido em cicatrização deveria fazer, é claro. Vista de cima parece uma bunda, um desavisado poderia até confundir o umbigo e... deixa para lá. Mas está indo tudo bem. Nunca fui bonito nem atlético, mesmo, o importante é estar vivo.

Sobrevivi porque não era minha hora, por providência divina ou puro acaso, pelo suporte espiritual, apoio logístico e cuidado constante de meu afilhado Marcelo – que não arredou do meu lado um segundo sequer para que minha esposa pudesse voltar a trabalhar e cuidar do pequeno Thomas. Voltei para casa e senti o apoio dos meus: aqueles mesmos, os de sempre, os que me apreciam e querem bem. E fiquei feliz por tê-los.

Por fim, até o momento – o tal, da onipotência e da Dra. Grey – passou. Já não vejo tudo tão claro quanto nos primeiros dias, já me irrito de novo com uma coisa ou outra, não virei um monge budista decano da paciência. O corpo que me pareceu tão forte e imediato em sua recuperação (nos primeiros dias) agora me parece ainda tão lento, longe de me trazer confortável às premissas do dia a dia. Aprendi que da sala de operações à dieta livre e à deambulação o caminho é bem mais curto que entre a retirada dos pontos e o retorno a uma “vida normal”.

A alma é que ainda se encanta dos lábios finos e doces de meu menino, tão querido e companheirinho, tão carinhoso; de minha esposinha estóica, traduzindo em ações práticas o amor que para tantos fica só no papel, trazendo perfume e frescor para as noites sulinas onde o frio já manda notícias.

Ganhei, de todos, o maior dos presentes: tudo aquilo que já era meu (mas poderia deixar de ser em um átimo, pois assim a vida é). “Gracias a la vida que me ha dado tanto”. E boa noite para o morro do Borel.

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Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/05/2008
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