Verdes águas do Tapajós

É fim de tarde, parte do céu está nublado, talvez chova mais tarde, durante a noite e a madrugada. É inverno na Amazônia, a estação das chuvas. O dia foi gostoso, a temperatura em nenhum momento foi alta demais, em nenhum momento tivemos aquele calorão sufocante tão comum nesses lugares muito úmidos.

Isso me lembra a conversa com o marinheiro malaio, enquanto observávamos a soja caindo num ritmo de duzentos quilos por segundo, mais de setecentas toneladas por hora, no porão do graneleiro de bandeira cipriota carregando soja para o México.

- There’s no winter in Brazil?

Conversa interessante, mas meio dura, complicada, num inglês já por si meio estropiado e, ainda por cima, “inglês de marinheiro”, algo tão difícil de entender como o inglês de um texano, que, aparentemente, só os mexicanos entendem. Talvez isso explique a vitória do George W nos Estados Unidos. A maioria das pessoas não entendia seu inglês, achava que ele falava uma coisa e, foram ver, falava outra.

Sim, nós temos inverno. Agora mesmo estamos no inverno, no sul, onde faz frio, e aqui, onde chove e faz calor e onde temos duas estações: verão e inverno. Em uma, chove menos e na outra chove mais. Os últimos anos, porém, têm mostrado uma tradução um pouco diferente para verão: seca. É, até na Amazônia a falta de chuva tem dado o ar de sua desgraça. Se temos neve? Sim, em meia dúzia de regiões bem altas no sul do país. Explico a ele que somos um país comprido no sentido norte-sul, o Equador nos corta ao norte e o Trópico de Capricórnio ao sul, mas do Trópico à fronteira, ainda tem uns mil e quinhentos quilômetros. Terra pra burro. Ele parece entender. Duvido, nem eu entendo.

De volta ao presente. Estou andando por áreas que não conheço. Tudo é novo pra mim, mesmo já tendo passado por aqui uma vez. Passagem fugaz. Deixamos pra trás Belterra, a Vila Mensalista, as estradas retas numeradas, o sonho não realizado de Henry Ford. A estradinha de terra dá uma súbita embicada pra baixo, é a tal descida de serra. Só rindo mesmo, uma descidinha de nada e o povo já chama de serra. Ah, se esse pessoal visse as descidas da Imigrantes e da Anchieta, da Dutra, ou daquela estradinha tenebrosamente linda de Santa Catarina, na Serra do Rio do Rastro...

Num topezinho da estrada, uma abertura na mata (tava louco pra escrever “uma abertura no dossel vegetal”, mas, fala sério... dossel, não!) e temos a primeira visão do Tapajós nesse dia. Até ele, mesmo nesse ponto a muitos quilômetros da foz, parece um mar de tão grande, uns doze quilômetros de largura. Nada mal. Uma largura razoável. A água parece verde. É verde, me garantem. Que seja.

Descemos mais um pouco e adentramos Iruçanga. Poucas casas de madeira bem espaçadas. Um bar, fechado. O rio está aqui, do lado, quase lambendo as soleiras de algumas casas. A cheia está no auge. As praias de verão estão encobertas por metros de água. São lindas essas praias na vazante. Praias de areia branca, fina, gostosa de pisar. Em alguns pontos, porém, todo cuidado é pouco: as arraias se enterram na areia das águas rasas e ficam ali, “quentando” ao sol. Na manhã seguinte veria um filé de arraia no mercado que me deu calafrios pelo seu tamanho. Nunca tinha visto uma tão grande nos rios pantaneiros, nem sabia que podiam atingir tal tamanho. Arraias-jamanta de água doce. Só no Amazonas. Não se deve pisar nessas areias e sim deslizar o pé. Pisando, vem um ataque do ferrão terrível da cauda. Há muitas panturrilhas destruídas pra comprovar. Deslizando, vem a fuga da arraia para águas mais fundas, longe dos intrusos. Só fica o susto. Técnica que aprendi muitos anos atrás num livro do Francisco de Barros Junior. E nunca esquecida.

Acho que o velho Chico de Barros merece umas linhas. Lendo seus livros, conheci muito desse país. Coisa mais curiosa: de repente, chego numa chapada nunca antes visitada, num rio amazônico qualquer, e parece que já estive ali. E, de certa forma, já estive. O Francisco de Barros Jr. andou por tudo isso. “Caçando e pescando pelo Brasil”, mais que o nome de uma série de livros, foi sua atividade, tanto profissional como lúdica. Nos idos de 30 e 40, em qualquer lugar que chegasse a caça era abundante, a pesca farta. E era fácil, tudo era fácil, sem maiores complicações. Só as viagens eram complicadas, pois, como hoje, não existiam estradas. Suas descrições nos enchem a boca d’água. Muitos lugares ainda estão do mesmo jeito, sem mudanças, a não ser pelas antenas de televisão, muitas parabólicas, orgulhosamente colocadas ao lado da entrada da casa. A primeira conquista do caboclo é a televisão. O resto todo vem depois.

Rodamos mais um pouco e chegamos a uma praia que ainda resiste à cheia. Descemos quietos, quase em surdina. Em certos momentos, falar é um sacrilégio. Nem tiro a botina. Se tirar e deixar meus pés sentirem o prazer da areia fina, macia, gostosa, aí, sim, vai ser difícil me tirar daqui. E os compromissos...

A água está morna, convidativa. Falando em cheia, todos imaginam uma água suja, barrenta. Mas não aqui. Essa foi outra coisa que o marinheiro asiático não entendeu. Expliquei a formação geológica do Planalto Central, a abundância de areia e rochas e quartzo, mas nada. É difícil, mesmo, pra quem conhece o Mekong e outros rios barrentos da Ásia. Já aqui, mesmo agora, com a cheia no auge, a água continua cristalina, verde-cristalina, revelando os desenhos feitos na areia e o vai-e-vem de algumas piabinhas. Qualquer peixe pequeno por aqui é piabinha. A vontade é tirar a roupa, entrar n’água e ficar. Mas os compromissos...

Tento ouvir alguma coisa e nada escuto. Nada que não seja próprio, natural, inserido no contexto (isso já foi moda, vejam só o que a memória apronta pra gente!). Alguns cantos de passarinhos, gritos de algumas aves, a água lambendo suavemente a areia da praia, acho que é só o que se ouve. Sento na areia, cruzo as pernas, fico quieto.

Bem à frente o Sol está se pondo. Farrapos de nuvens mais decoram do que escondem seu ocaso. Tons pastéis de laranja, amarelo, vermelho... As águas se parecem com as de uma piscina, de tão calmas. Alguns patos se aproximam e entram no rio sem ligar pra nossa presença. Também, tá todo mundo quieto, parado. Não despertamos medo a nada, nem a ninguém, tamanha é a paz de espírito que domina a todos. Bichos-grilo chamariam a isso estar em comunhão com a natureza, acho eu.

A água vai ficando mais e mais dourada à medida que o Sol se põe. As pequenas nuvens filtram e suavizam a luz mais forte. O nome desse dia é serenidade. Alguns patos passam nadando logo à minha frente. Tampouco eles têm pressa, simplesmente estão curtindo a água, volteando um pouco.

Todas as cidades por aqui têm nomes de cidades portuguesas: Belém, Santarém, Faro, Breve, Alenquer, Almeirim, Óbidos... Por algum motivo desconhecido é nisso que penso, nisso e nos navegadores portugueses. Alguns versos de “Os Lusíadas” vêm à mente e sinto que têm tudo a ver com este momento. O motivo não sei, nem desconfio, mas o encaixe é perfeito.

O tempo passa o tempo, gostosamente. Uma pequena canoa vem deslizando perto da margem. Ainda está longe. Um pato solitário entra na água e vem em minha direção. Em algum momento próximo vão passar um pelo outro, bem na minha frente. A contragosto quebro meu encantamento, pego a câmera e fico esperando a passagem do pato e da canoa. Fotografo. Algumas dezenas de quilômetros rio abaixo, a soja continua enchendo os porões do navio, o marinheiro malaio já deve estar em outro turno, acompanhando, fiscalizando, talvez nem percebendo o inverno amazônico.

O tempo passa. Ao invés de se arrastar, passa é depressa. A noite chega suave, se mistura com a tarde. É porque é noite de Lua cheia, já meio alta no céu, e a luz da Lua que chega se mistura com a luz do Sol que se vai.

Se eu fosse índio como alguns de meus ancestrais, criaria uma bonita história sobre a união efêmera do Sol e da Lua, condenados por Tupã a viverem em momentos opostos, um de dia, outra à noite, mas deixando suas auras se encontrarem, se cruzarem, se misturarem, como agora, sobre as águas verdes do Rio Tapajós.

Emerson Gonçalves
Enviado por Emerson Gonçalves em 13/01/2006
Código do texto: T98374