SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ
    

Uma moça chamada Ernestina, aos dezenove anos, em meados dos anos cinqüenta fazia em Uruguaiana o que hoje se reverbera como trabalho social. Não tinha lá grande preparo a não ser na sábia tarefa de ser mãe, mas o que a vida e a escolaridade média lhe ensinara distribuía graciosamente à vizinhança ainda menos favorecida. Assim, brincava de dar aulas alfabetizando crianças e ensinando às meninas coisas práticas como aplicar injeções, tarefa que a levava a percorrer grandes distâncias quando necessário, e outras coisas que não lembro. Lembro que era muito querida e requisitada naquela periferia erma, distante do grande povo. Ganhei com isso uma alfabetização aos quatro anos e as honras de ser o filho da “santinha”.

Ela morreu numa idade de ajudar a velar mortes. Foi enterrada numa idade de enterrar: vinte e oito anos. Ou apenas retornou de onde e na mesma luz que viera. Fazia o que manda fazer aquele velho pescador da fábula que ao amanhecer encontrou a orla marítima repleta de estrelas do mar. Uma por uma, ia gastando seu dia devolvendo-as à água, esquecendo de sua própria tarefa de sobrevivência. Um rapaz que observava teria lhe dito: “meu bom velho, nem que leves a vida inteira poderás devolver todas ao mar”. Ao que ele teria respondido: “mesmo que conseguisse devolver apenas uma já teria feito a minha parte”. Piegas? Talvez, mas por raras e provavelmente induzido pela lembrança materna, essas pessoas me tocam com profundidade. Elas existem em todo o lugar e por desprendidas luzem pouco, o que talvez iniba o necessário caráter multiplicador. Minha mãe viveu pouco, devolveu sua quota de estrelas ao mar, acho que jogou também as minhas e tornou-se uma em especial que vez por outra pisca para mim.

Numa época em que está muito difícil de ser generoso, em que pela guerra diária na busca da sobrevivência somos impelidos ao resguardo total e absoluto, essas pessoas são um esteio. São pontes e ombros que necessitam ser preservados para amparar e confortar os mais carentes. Necessitam ser estimulados para que seu exemplo não seja enterrado em idade de enterrar.

A garota Ernestina se foi muito cedo, mas deixou comigo uma mensagem que li bem, entendi bem, prego bem e reconheço quando vejo, e que deveria praticar sem esforços: solidariedade. 

Jair Portela