Domingo Lindo

No supermercado onde habitualmente faço compras, costumam estar, nas manhãs do fim-de-semana, um ou dois rapazes da Casa do Gaiato, a vender o jornal da instituição.

A Casa do Gaiato é uma organização católica, que funciona como lar, para jovens do sexo masculino, que não têm família. Estudam e aprendem uma profissão, e saem normalmente aos 18 anos. Vivem em regime de internato, dormindo em camaratas, e partilhando tudo, inclusivé o vestuário. Não existem roupas de uso exclusivamente pessoal. A mesma peça de roupa, é utilizada por todos aqueles, que têm a mesma estatura fisíca.

Então, dentre os diferentes meninos a quem compro o jornal, existe um especial. Pequeno, com uns olhos lindos e grandes, do tamanho do mundo, mas com um semblante sério (sem ser grave) e reservado.

A primeira vez que o vi, fiquei hipnotizada. Senti um enorme respeito, quase veneração, por aquele "Ser", que emanava dignidade e sensibilidade por todos os poros. Olhava as pessoas que passavam por ele, mas o seu olhar perdia-se no horizonte. Um olhar profundo, mas distante. Lia-se em simultâneo fragilidade, força, tristeza, conformismo, liberdade, medo. Simplesmente arrepiante de comoção.

Como abordar essa peça de cristal, sem ferir qualquer susceptibilidade?

Dirigi-me a ele, e sorrindo-lhe amável e naturalmente, perguntei-lhe o preço do jornal. Olhou para mim, e respondeu sem sorrir. Comprei o jornal, e ao dar-me o troco, atrevi-me a perguntar-lhe o nome e em que ano andava. Olhou-me, desviou o olhar para o lado, e respondeu mecânicamente a tudo. Li-lhe nos olhos "mais uma que me está a chamar de Bobby (animal de estimação)". Entreolhada e com o coração partido, balbuciei um até logo, e desapareci imediata e completamente.

Continuei a vê-lo e a comprar-lhe o jornal, mas limitava-me a um Bom Dia e Até Logo, e ele acrescentava um Obrigado mecânico pela venda efectuada. Claro que continuei a sorrir naturalmente, e ele continuou sério naturalmente.

Alterei os meus horários de supermercado, e estive cerca de dois meses sem o ver. Esta manhã, no horário antigo, dirigi-me como habitualmente para ele, e parei de repente. Deu-me um Bom Dia com um sorriso de orelha a orelha. Estremeci toda, pelo inesperado daquele sorriso lindo. Sorria com os lábios e com os olhos. Fiquei comovida, mas lá me aguentei, e retribuí, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Encorajada, aventurei-me:

- Já me tinhas dito há tempos, em que ano andas, mas não me lembro mesmo. Relembras-me por favor?

- Claro. Tenho doze anos... ai!!... enganei-me... - com um sorriso meio envergonhado, coçou a testa e, embaraçado, olhando-me de soslaio, apanhou o meu sorriso aberto e alegre - .. ando no 7º ano... Ahahahah... enganei-me, olhe só a minha cabeça.. Ahahah...

- Ahahah... Ainda bem que não sou a única a trocar as coisas... Continuação de um bom domingo para ti.

- Obrigado. Para si também.

Existiu uma cumplicidade mútua, no recato da continuação da nossa conversa. Ficámos por ali.

Ao fim de dois anos, não só fui brindada com um sorriso de orelha a orelha, como recebi de oferta aquelas doces e gostosas gargalhadas, que de tão abençoadas, eram totalmente cristalinas. Todo ele ria e sorria, leve que nem uma pena.

Meu Deus... Coisa boa...

Obrigada Amigão do Céu. Valeu hem?

Genoveva

(2005/01/08)

(OBS: Agradeço a Ricardo Sérgio (Barba Negra), a quem pedi ajuda na classificação deste texto, e que não só ma ofereceu, como ainda me deu um bónus de análise estílistica. Obrigada. Valeu, hem?)

Genoveva
Enviado por Genoveva em 16/01/2006
Reeditado em 16/01/2006
Código do texto: T99700