As urgências da educação superior no Brasil

Wilson Correia*

“Aponta com teu dedo a cada coisa

e pergunta: ‘Que é isto? E como é?’”

(Bertolt Brecht).

Aceitei o convite de vocês para estar aqui neste instante junto aos estudantes paralisados no CFP da UFRB e me sinto em uma situação confortável. Sim, confortável. Não tendo sido candidato a nada, não estou aqui eleito para nenhum cargo. Além disso, não sou mais um estudante, e não vou reivindicar aquilo que vocês mesmos têm condições de fazê-lo com suas próprias vozes. Não falo em nome dos meus pares, os professores. Muito menos em nome das instâncias administrativas da UFRB. Expresso-me na condição de ser humano que tem se esforçado ao longo da vida para ver a própria humanidade reconhecida na humanidade do outro. Vim na condição de ser social preocupado com os rumos históricos de nossa sociedade. Aqui estou como professor que se interessa pela causa da educação, tanto quanto vocês, queridos alunos, queridas alunas. É como humano, cidadão e professor que o desconforto abre minha porta e me traz até vocês.

Que desconforto é esse? Vou dizê-lo a conta-gotas, até onde minhas limitações compreensivas me permitem. Tenham paciência! Ao final, vocês poderão ter um quadro sintético do meu desassossego, provocado, sim, pelo meu envolvimento com as urgências da educação superior no Brasil deste nosso cinco de setembro de 2011, quando estamos às voltas com a problemática da expansão da educação superior em nosso país.

Considerando a literatura especializada** (ver ao final deste texto as indicações), podemos notar que a expansão da educação superior no Brasil sempre contou com ampla participação da iniciativa privada. Alguns dados que disponibilizo, não sistemáticos, posto que falo não como pesquisador da área, corroboram essa afirmação.

Considerando o número de matrículas no ensino superior entre 1960 e 1980, de um total de 226.218 (duzentos e vinte e seis mil, duzentos e dezoito) em 1960, o setor público financiava 58,5% (cinquenta e oito vírgula cinco por cento) delas. Porém, ele chegou ao ano de 1980 subsidiando apenas 35,7% (trinta e cinco vírgula sete por cento) de um total de 1.277.296 (um milhão, trezentos e setenta e sete mil, duzentos e noventa e seis) matrículas. Deu-se, no período, o decréscimo de 22,8% (vinte e dois vírgula oito por cento), os quais foram transferidos à responsabilidade da iniciativa privada em educação, uma vez que esse setor saltou de um financiamento de 41,5% (quarenta e um vírgula cinco por cento) para 64,3% (sessenta e quatro vírgula três por cento) em 1980. Fica claro, pois, que, de 1960 a 1980, o Estado se desincumbiu largamente do financiamento das matrículas no ensino superior e transferiu ao capital essa tarefa.

Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN 9394/96), a expansão sob a batuta do capital ganhou mais fôlego ainda, fazendo com que, em curto espaço de tempo, a iniciativa privada tivesse sob seu controle mais de dois terços das vagas oferecidas no ensino superior. É quando a educação cai em definitivo nas garras das leis de mercado, o que não impede ao sistema privado crescer 151,6% (cento e cinquenta e um vírgula seis por cento) de 1996 a 2004. Esse fato evidencia que a educação superior no Brasil não é autônoma, mas gerida pelo sistema econômico capitalista que mantemos.

A Lei n. 10.172/01 estabeleceu o Plano Nacional de Educação (PNE), ancorado em três propósitos:

1 A educação como direito de todos;

2 A educação como desenvolvimento social e econômico do país;

3 A educação como combate à pobreza e como via de inclusão social.

Para o Ensino Superior, suas diretrizes foram:

1 Até o final da década de 2010: oferta da educação superior para, pelo menos, 30% dos jovens entre 18 a 24 anos;

2 Ampliação da oferta do ensino público de modo a assegurar a proporção de, pelo menos, 40% do total das vagas;

3 Estabelecer um amplo sistema de educação à distância;

4 Recredenciar as instituições de ensino, garantindo assim a qualidade;

5 Diversificar a oferta de ensino, investindo em cursos técnicos, noturnos, modulares e seqüenciais.

Esses propósitos e diretrizes exigem o crescimento da Rede Federal de Ensino Superior Tecnológico, que foi de 140 (cento e quarenta) instituições de ensino, em 2002, para 366 (trezentos e sessenta e seis), em 2010. Impõe o crescimento da Educação a Distância (EaD), que saiu de 5287 (cinco mil e oitenta e sente) matrículas, em 2000, e chegou a 856000 (oitocentos e cinquenta e seis mil), em 2009. Leva ao financiamento público da educação privada, uma vez que, pelos dados reais e pela projeção oficial do número de financiamento de bolsas do financiamento estudantil (FIES) pelo governo federal, essa modalidade de auxílio saiu do zero, em 1999, para 700.000 (setecentos mil), em 2011. Já o Universidade para Todos (ProUni), que oferecia 112.275 (cento e doze mil, duzentos e setenta e cinco) bolsas, em 2005, alcançou 247.643 (duzentos e quarenta e sete mil, seiscentos e quarenta e três) bolsas, em 2009.

Essas medidas contribuíram para que a expansão do ensino superior brasileiro acontecesse a passos largos, com amplo destaque para a forte presença da iniciativa privada, uma vez que, em 2002, tínhamos um total de 1.773,087 (um milhão, setecentos e setenta e três mil e oitenta e sete) vagas (sendo 1.477, 733 –um milhão, quatrocentos e setenta e sete mil, setecentos e trinta e três- nas instituições privadas) e chegamos, em 2008, a um total de matrículas de 2.985, 137 (dois milhões, novecentos e oitenta e cinco mil, cento e trinta e sete), sendo que, desse número 2.641,099 (dois milhões, seiscentos e quarenta e um mil e noventa e nove) delas já pertenciam às instituições privados de ensino superior.

O ensino superior público e o ensino superior privado crescem. No entanto, de 2005 em diante, fica claro que esse crescimento impulsiona a oferta de vagas no setor privado, notadamente pela influência direta das bolsas do Programa Universidade para Todos (ProUni).

Nesse contexto, surge o REUNI (Programa de Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), que criou 14 (catorze) novas universidades federais, dentre as quais a nossa UFRB, o que possibilitou ao sistema educacional abrir mais de trezentas mil vagas em cursos no ensino universitário.

É contra o domínio da educação pelo capital que lutam, por exemplo, os chilenos, que têm em Camila Vallejo, uma jovem de apenas 23 anos, uma líder calma, mas determinada, contra o lucro no âmbito da educação de todos os níveis. Perguntada, pela Revista Carta Maior de 05/09/2011, o que ela achava do Universidade para Todos (ProUni), ela não aborda o ProUni diretamente, mas afirma: “Para elem do detalhe técnico das propostas, o que hoje estamos defendendo no Chile são ideias políticas muito concretas. E o fim do lucro na educação é uma das consignas que teve maior adesão da cidadania. A própria lei chilena de Educação criada na ditadura proíbe o lucro na educação. O cumprimento dessa lei é um dever que esse governo descumpriu grosseiramente e que, após essa mobilização [dos estudantes chilenos, em 2011, ainda em curso], não nos contentaremos com a continuidade dessa situação. É preciso avançar na direção da proibição do lucro em todo o sistema educacional, desde o pré-escolar a todos os setores de educação superior, assegurando sanções para aqueles que descumprirem esta lei e para aqueles que fizerem isso durante os últimos 30 anos”

À parte o que ocorre em outros países, que a expansão a que assistimos no Brasil atendeu a um anseio do povo brasileiro por democratização do acesso ao ensino superior, parece inegável. Mas... precisava ser com tamanha ênfase no setor privado? Acesso é importante, claro! Mas... e a permanência? Números, quantidade, são importantes e ninguém duvida. Mas... cadê a qualidade?

Ainda ontem saiu na mídia a notícia de que, dentre as universidades brasileiras, somente a USP e a UNICAMP estão na lista das universidades mais destacadas do mundo. A USP ocupa o lugar de número 169. A UNICAMP, a posição de número 235. UFRJ e UFMG saíram da lista este ano.

Segundo Nelson Valente (Blog Luís Nassif), “A China tem um plano de fazer 100 universidades de qualificação mundial até 2021. A Alemanha tem um programa de 2,5 bilhões de euros para a qualificação. O presidente francês deu autonomia para as principais universidades e exigiu que elas se qualifiquem. Portugal e Austrália também têm feito movimentos nessa direção. A Inglaterra tem pelo menos três universidades de classe mundial e os EUA tem um caminhão delas. E o Brasil, quer o que com seu ensino superior?”

Penso que é urgente, para o Brasil, pensar sobre que modelo de sociedade lhe convém. Uma sociedade de livre mercado, na qual a economia tiraniza tudo, bens materiais, sociais e culturais, incluindo a fagocitagem do Estado?

É urgente, também, que nos esforcemos para pensar sobre que modelo de homem e mulher queremos formar: queremos apenas educar o trabalhador para o mercado de trabalho?

Também se faz urgente que estudantes, técnico-administrativos e docentes coloquem em suas pautas de reivindicação o fim do lucro na educação, não apenas no ensino superior.

Outra urgência é a defesa da reinvenção da autonomia das instituições de ensino de nível superior. Não é mais possível que nosso ensino universitário continue governado pelo sistema econômico chamado capitalismo.

Além disso, temos que nos indagar: vale mesmo a pena esforçarmo-nos para formar o cidadão para atuar na sociedade liberal do individualismo possessivo?

O que queremos nós com a educação superior?

Talvez, pensando nessas perguntas, até encontremos motivos para nos darmos conta das razões pelas quais o CFP da UFRB não merece a precariedade que o caracteriza e nos faça realçar ainda mais o peso da palavra qualidade.

Isso, de algum modo, vocês já estão fazendo, creio, com essa paralisação que nos educa a todos: comunidade acadêmica, comunidade local e sociedade brasileira.

Nós, os docentes, não contamos nem com correlação de forças nem com coragem e sensibilidade para fazer paralisação, mas vocês estão fazendo e nos ensinando a preocupação com a causa da educação de qualidade social, como direito da cidadania, pública, republicana, sem mensalidades, plural, socialmente referenciada e capaz de formar o homem e a mulher para eles mesmos antes de instrumentalizá-los.

Sim, caros alunos e alunas: hoje, vocês é que estão no lugar dos nossos verdadeiros educadores.

Obrigado pela paciência!!!

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* Wilson Correia é Doutor em Educação pela UNICAMP e Adjunto em Filosofia da Educação no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncabo da Bahia.

**AMARAL, 2002; BARBOSA, 2010; BIELSCHOVSKY, 2010; BRASIL, 2001; BRASIL, 2009; COELHO, 2005; COSTA, 2010; GOTO, 2010; INEP, 2009; MACHADO, 2006; MEC, 2010a; MEC, 2010b; MICHELOTTO, 2005; SGUISSARDI, 2001; TERRIBILI FILHO, 2006; ZAINKO, 2005.