CARLOS MERTERS - A BIBLIA NOS FALA ASSIM...!

"Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta,

ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto,

te recompensará!" Mt 6, 1-6.16-18

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FORMAÇÃO BÍBLICA CARLOS MESTERS: APOCALIPSE DE JOÃO.

É fascinante ouvir frei Carlos Mesters. Homem de jeito simples e fala humilde.Uma linguajem simples. Fala do jeito do povo de Deus.Sem palavriado rebuscado. Ele coloca a palavra de Deus no meio da gente.

https://www.youtube.com/watch?v=z0ETUXsKk34

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INTRODUÇÃO AO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO

21/11/2012 admin Sem categoria

INTRODUÇÃO AO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO: QUINZE CHAVES DE LEITURA.

Frei Carlos Mesters, Carmelita

(Obs.: Esse artigo é o 7º de uma série de 10 artigos de frei Carlos Mesters que estamos disponibilizando semanalmente na internet, em www.gilvander.org.br.)

A ressurreição se anuncia

Aurora de um novo dia

A esperança renasce

O Apocalipse atua

1ª Chave: Visão geral da problemática em torno do Apocalipse

2ª Chave: Diferença e semelhança entre Profecia e Apocalipse

3ª Chave: A Porta de entrada no Apocalipse de João (Apoc 1,1-20)

4ª Chave: A situação das Sete Comunidades da Ásia, espelho de hoje (Apoc 2-3)

5ª Chave: Apocalipse: anúncio profético da Boa Nova de Deus em época de Império

6ª chave: 1ª Característica: Expressar tudo por meio de imagens e símbolos

7ª Chave: 2ª Característica: Dividir a história em etapas para situar o momento presente

8ª Chave: 3ª Característica: Usar linguagem radical na leitura dos fatos

9ª Chave: Limites, perigos e desvios do movimento apocalíptico

10ª Chave: As tendências na interpretação do Apocalipse

11ª Chave: Época, autor e história do texto do Apocalipse de João

12ª Chave: Divisão e articulação do texto do Apocalipse

13ª Chave: Apocalipse e Liturgia

14ª Chave: Apocalipse e a vinda de Jesus no fim dos tempos: “Vem, Senhor Jesus!”

15ª Chave: Resumo da Mensagem do Apocalipse

Apêndice: O contexto mais amplo da conjuntura do império romano da época

1ª Chave

VISÃO GERAL DA PROBLEMÁTICA EM TORNO DO APOCALIPSE

1. As dificuldades mais comuns do povo

O Apocalipse de João é um livro misterioso, difícil, controvertido, fechado a sete chaves, cheio de visões estranhas, descritas em linguagem obscura, que a gente não entende e que muitas vezes metem até medo nas pessoas. Sobretudo hoje em dia, nestes tempos apocalípticos! Livro cheio de violência e morte como se a vida humana já não valesse mais nada. Livro que mistura os tempos: você não sabe se ele fala do presente, do passado ou do futuro. Livro que provoca atitudes fatalistas, pois ele parece sugerir que não adianta você se esforçar para interferir no rumo dos acontecimentos. Tudo já parece determinado e a nós só cabe assistir a tudo de camarote.

A palavra apocalipse sugere e provoca reações bastante negativas: Sugere algo que tem a ver com confusão, desastre, fim do mundo. Sugere algo que vem de forças superiores. Alguns dizem que vem de Deus. Por isso provoca o fatalismo que faz ficar parado sem participar. Sugere visões e revelações, recebidas e interpretadas por videntes, como aqueles três sinais que apareceram na parede do palácio do rei Baltazar (Dn 5,5.25-26). Sugere ainda um certo fanatismo que pode levar as pessoas a cometer desatinos. A leitura errada do Apocalipse já provocou o suicídio de muita gente, tanto ontem como hoje. Afinal, qual o significado certo do Apocalipse?

2. Três interpretações muito comuns

O Apocalipse de João é um dos livros mais procurados da Bíblia. Também dos mais abusados. Muitos não entendem o seu sentido, mas sentem uma atração, uma curiosidade. Uma senhora disse: “Entender, não entendo. O meu entendimento é fraco, mas gosto muito. Me traz conforto e coragem na luta”. De fato, não é necessário entender de música para poder sentir o con­forto de uma bela sinfonia! Imagens e visões, por si mesmas, podem comunicar conforto e coragem. Mas não basta a coragem. Sem o entendimento, ela pode desandar como um carro desgovernado. Pode até ser usada para fins anti-evangélicos, como já aconteceu e ainda acontece.

Outros são mais críticos. Não querem só assistir. Querem é conhecer o rumo e participar. Por isso não gostam do Apocalipse: “Deus faz tudo. Não sobra mais nada para a gente. E aquelas visões terríveis do fim do mundo! Sem um entendimento, aquilo só dá medo na gente”. Coragem sem entendimento desanda. Entendimento sem coragem paralisa. Como combinar as duas coisas na interpretação do Apocalipse? E que entendimento? Pois nem todo entendimento abre o sentido do Apocalipse.

Quando em 1980 o Papa João Paulo II sofreu o atentado, alguns crentes diziam: “Isto está bem conforme o que está escrito. O Apocalipse diz que a besta-fera recebe ferida de morte e sobrevive”. Para uns, a besta-fera é o Papa. Para outros, é o governo. Para outros, o capitalismo. Para outros, o comunismo. Cada um lê o Apocalipse conforme o seu próprio entendimento e dele tira as suas conclusões. Onde procurar o entendimento certo?

3. Resumindo:

Na opinião comum, apocalipse ou apocalíptico é sinônimo de:

* Desastre e confusão,

* Medo e fim de mundo,

* Visões estranhas e imagens esquisitas,

* Intervenção do alto e fatalismo cá em baixo

* Muito usado e muito abusado

2ª Chave

DIFERENÇA E SEMELHANÇA ENTRE PROFECIA E APOCALIPSE

Quando dizemos: “Fulano é um sujeito apocalíptico!”, costumamos indicar uma pessoa que só fala em desastres e fim do mundo. Quando dizemos: “Fulana é uma profetisa!”, indicamos uma pessoa, cuja palavra tem uma mensagem importante para os outros. Como explicar esta diferença? Profecia e Apocalipse não são ambos manifestações do mesmo Espírito de Deus e fontes de espiritualidade para o mesmo povo de Deus?

Muitas vezes, se diz: “Temos que ser profetas!” Nunca se diz: “Temos que ser apocalípticos!” Pelo contrário! A palavra apocalíptico parece ter uma apreciação negativa. As igrejas até costumam reagir para manter fora de casa os ares aparentemente confusos e incômodos do movimento apocalíptico. Mesmo assim, o movimento pentecostal-apocalíptico cresce como uma bola de neve. Cresce em toda a parte, sobretudo entre os mais pobres e excluídos. Assim acontecia no fim do primeiro século. Assim acontece hoje.

No Antigo Testamento, antes do exílio, no período dos Reis, entre 1000 e 587 aC, não havia Apoca­lípticos, mas havia muitos Profetas. Depois do exílio, de 587 aC até 100 dC, depois que os grandes impérios tomaram conta do mundo, os profetas começaram a desaparecer e apareceram os apocalípticos que produziram uma abundante literatura entre o século IV aC e o século II dC. Como se explica esta mudança? Qual a relação entre apocalipse e império, entre o movimento apocalíptico e a situação sócio-política e econômica em que o povo vive?

Desde o início da monarquia, em torno do ano 1000 antes de Cristo, até o exílio, 587 aC, os profetas faziam parte da vida do povo de Israel. Eles eram a consciência falante do povo de Deus. Depois do exílio, porém, o povo dizia: “Não existem mais profetas” (Sl 74,9). Chegaram a dividir a história em dois períodos: o período em que havia profetas, e o período “em que já não havia mais profetas” (1 Mc 9,27). Falava-se dos “antigos profetas” (Zac 1,4; 7,7; cf Ez 38,17). Coisa do passado! Tinham até feito uma lista que já estava completa e encerrada: “doze profetas” (Ecli 49,10). E diziam: “Antigamente, Deus falava para a gente, agora já não fala mais!” (Sl 99,6-8). O povo constatava a mudança, mas não sabia explicar por que Deus já não se manifestava como antes. Achavam que “a mão de Deus tinha mudado” (Sl 77,11). Só ficou a saudade, cada vez mais forte, dos antigos profetas!

Assim, durante os mais de 400 anos do período dos reis, eles tiveram profe­tas. Durante mais de 500 anos, desde o exílio até João Batista, viveram sem profetas! É neste período sem profetas que surge o movimento apocalíptico como nova forma de profecia, como nova manifestação do Espírito, como nova espiritualidade. Qual a experiência humana que, quando iluminada pela Palavra de Deus, gera a profecia, e qual a experiência humana que, quando iluminada pela Palavra de Deus, gera o movimento apocalíptico?

A experiência humana em que surge e floresce a profecia

Os profetas do tempo dos Reis viviam numa época em que era possível abarcar e controlar a situação. O espaço em que viviam, o território, era limitado e podia ser defendido e governado. O povo que vivia dentro deste território podia ser convocado, recenseado e cobrado. Eles eram donos do espaço em que viviam. Tinham autonomia política. Todos professavam a mesma religião, tinham fé no mesmo Deus. Todos eram súditos do mesmo rei, tinham o mesmo compromisso de observar a Aliança. Eles eram uma nação independente, senhora do seu próprio destino, da sua própria história. Era dentro deste espaço limitado que eles procuravam viver a sua fé em Deus, observando a Aliança.

Na origem da ação profética está uma experiência humana muito profunda e muito comum até hoje. Quando, diante de uma injustiça, você percebe que tem a possibilidade de fazer algo para mudar a situação, então, dentro de você, nasce um sentimento de responsabilidade que o faz dizer: “Não posso ficar parado! Deus está me chamando! Devo fazer alguma coisa!” Não é assim? Pois bem, a ação profética nasce desta consciência forte que, de vez em quando, surge em nós de que podemos e devemos fazer algo para mudar a situação. A teologia da Libertação é profética. Ela nasceu da consciência e da possibilidade que se entrevia de nós cristãos podermos interferir no rumo da história da América Latina e de transformarmos a situação de acordo com as exigências da Aliança, do Evangelho. Ela usa expressões que traduzem a mesma experiência: ser sujeito da história, assumir nossa responsabilidade diante dos fatos, responder diante de Deus pelo que acontece no país, cumprir nossa tarefa de transformar a situação.

A mudança que ocorreu

O exílio da Babilônia (598 aC a 537 aC) provocou uma grande mudança, pois quebrou o sistema sócio-político em que o povo vivia no tempo dos reis. Em 598, a elite (rei, sacerdotes, falsos profetas, nobres e chefes) foi levada para o exílio (2Rs 24,10-17). Dez anos depois, em 587, o pouco que restava da lide­rança foi preso e morto (2Rs 25,1-21). Jerusalém, a capital, junto com o Templo, o santuário do rei, tudo foi destruí­da. Todos ficaram sob o domínio do poder estrangeiro, sem mais nenhum recurso para poder con­trolar a situação. Já não eram Estado nem Nação, mas apenas uma comunidade étnica, perdida num império multi-racial, sem independência política, sem exército, sem rei. O espaço livre ficou muito reduzido e, no decorrer dos anos, foi ficando cada vez menor. O pouco poder que lhes sobrou se concen­trava em torno do Sacerdócio que controlava o Templo e em torno dos doutores ou escribas que controlavam a explicação da Lei.

Anteriormente, na época da monarquia, o povo experimentava o mundo, o tempo (história) e o espaço (terri­tório) como entregues à sua própria responsabilidade. Esta experiência despertava nele a vontade de interferir no rumo das coisas e gerava a profecia. Quando, naquele tempo, o povo do campo era oprimido pelos poderosos, ameaçado de perder suas terras, surgiam profetas como Amós, Miquéias, Isaías e Jeremias. Eles enfrentavam os poderosos e cobravam deles o compromisso da Aliança. A fé em Deus assumia a forma de compromisso e de engajamento. Prevaleciam a observância da Lei de Deus e a fidelidade à Aliança.

Mas agora, nesta nova situação, era impossível imaginar alguém das aldeias da Palestina ser profeta ou profetisa no estilo antigo. O camponês da Palestina não tinha nenhuma possibilidade de cobrar do imperador helenista a observância da Lei de Deus. O mesmo acontece hoje. Difícil imaginar, por exemplo, que o coordenador ou a coordenadora de uma comunidade do interior de Minas possa enfrentar o FMI (Fundo Monetário Internacional) ou cobrar de W. Bush, presidente dos Estados Unidos, a observância do Evangelho. Tanto hoje como naquele tempo, o império tem outros deuses e outras leis!

A experiência humana em que surge e floresce o movimento apocalíptico

O movimento apocalíptico surge exatamente nos períodos em que a história do povo parece estar à deriva, sem controle, ameaçada de desintegrar-se. Mas ele surge não do lado de quem conduz a história, mas sim do lado de quem por ela é esmagado. Aparece do lado de quem está perdido, mas quer continuar a crer.

Diante do mundo ilimitado e ameaçador do império, os pobres experimentavam uma total impossibili­dade de interferir no rumo das coisas para transformar a situação. Já não eram donos de nada. Estavam sem nenhum poder num mundo que os explorava e excluía. O “macro” ameaçava esmagar e paralisar o “micro”! Sem ter onde se agarrar, o povo pobre das aldeias da Palestina se defendia e procurava sobreviver reforçando em si a fé de que o Deus dos Profetas continuava sendo o Senhor da história e do mundo! “Deus é grande! Ele saberá realizar a sua promessa! Ele nos salvará!” A fé em Deus assumia a forma de entrega e de abandono. Preva­leciam a experiência de gratuidade e a confiança na promessa divina que garante a derrota do mal e a vitória do bem.

No movimento apoca­líptico manifesta-se a experiência de vida e a fé dos pobres e oprimidos sem po­der. É a teimosia da fé dos pequenos que não entrega os pontos nem quer deixar morrer a esperança! Esta fé, além de teimosa, é concreta. Ela não agüenta viver muito tempo sem sinais palpáveis e sugestivos. Os apocalípticos inventam formas de crer que são pouco ortodoxos para a elite. Mas são a forma que o povo pobre encontra para não se perder e poder sobreviver. É o que acontecia com o povo nos séculos de imperialismo depois do exílio da Babilônia e é o que está acontecendo hoje em dia aqui na América Latina, onde todos sofremos sob o império neoliberal. Desta necessidade dos pequenos de alimen­tar sua fé com sinais concretos, é que nasce uma visão do mundo que é própria do movimento apoca­líptico.

Eles dividem o mundo em dois planos, o mundo de cima e o mundo de baixo. Para eles, o mundo verdadeiro e definitivo é o mundo de cima, o mundo de Deus. O mundo cá de baixo é passageiro. As coisas que acontecem aqui entre nós, no mundo de baixo, são apenas um reflexo do que acontece no mundo de cima. O seu sentido verdadeiro e definitivo, só o conhece quem recebe revelações da parte de Deus a respeito do que acontece no mundo de cima. Esse poderá ajudar o povo a ler os fatos que estão acontecendo no mundo de baixo. Ou, como diziam naquele tempo, ele é capaz de “tirar o véu”. Apo-calipse é uma palavra grega que significa “tirar o veu” ou “re-velar”. Apocalíptico é aquele que tira o véu e explica o sentido dos fatos, “revela o que deve acontecer em breve” (Ap 1,1).

Esta maneira de concretizar a fé era o que sustentava os pequenos. Era a espiritualidade que lhes dava a paciência histórica para continuar resistindo e, no fim, vencer o opressor pelo cansaço. Eles souberam encontrar os símbolos e as imagens que transmitiam a Boa Nova da presença libertadora de Deus no meio do povo.

Resumindo. Profecia e Apocalipse! Aliança e Promessa! Observância e gratuidade! Dois tipos de expe­riên­cia humana. Dois lados da mesma medalha, duas espiritualidades, duas maneiras diferentes de expressar e viver a mesma fé: “Deus está conosco! Nós somos o seu povo!” De um lado, a experiência da própria responsabilidade diante da situação do povo desafia as pessoas e provoca nelas o profetismo, a vontade de transformar e o desejo de observar a Aliança. De outro lado, a experiência das próprias limitações frente ao poder opressor gera nas pessoas um sentimento de impotência e, para garantir a sobrevivência, leva-as a confiar na gratui­dade e no poder da Promessa. São duas forças profun­das da vida humana. Uma deve ajudar a outra para manter o equilíbrio. São como as duas pernas da caminha­da: uma sem a outra não anda! Ambas nascem da vida que nos desafia e provoca, e de Deus que nos chama e conduz. Toda vez que uma pensa ser auto-suficiente e exclui a outra, ela se prejudica a si mesma e coloca em risco a caminhada do povo. O profeta que despreza o apocalíptico já não sabe o que é profecia. O apocalíptico que despreza o profeta deixou de ser ele mesmo uma revelação (apoca­lipse) de Deus para o povo.

3ª Chave

A PORTA DE ENTRADA NO APOCALIPSE DE JOÃO

Apocalipse 1,1-20

Ap 1,1-3: A Apresentação. Aqui batemos na porta

Ap 1,4-8: A Saudação. João vem abrir e convida para entrar

Ap 1,9-20: A Visão Inaugural João nos coloca em contato com Jesus

O primeiro capítulo do Apocalipse de João é uma amostra do que vem a ser o livro e a sua mensagem: (1) informa sobre a natureza do livro; (2) apresenta-o como uma carta carinhosa escrita por uma pessoa amiga para comunidades perseguidas que precisavam de animação e de orientação; (3) cria o ambiente, no qual o livro deve ser lido; (4) envolve as comunidades numa celebração, em que possam experimentar a presença de Jesus ressuscitado, vivo no meio delas.

Apocalipse 1,1-3: Apresentação do livro: Revelação de Jesus Cristo

Estes versículos iniciais oferecem informações sobre a natureza do Apocalipse, sua origem, seu valor ou autoridade, seu autor, conteúdo e destinatários. Mostram ainda como o livro deve ser lido e interpretado, qual a exigência de compromisso e qual a recompensa que a sua observância traz consigo.

A palavra Apocalipse significa re-velação. Jesus é o autor da Revelação. Ele nos revela “as coisas que devem acontecer em breve” (Ap 1,1). Há uma hierarquia na maneira de comunicar a revelação:

A sua origem está em Deus,

que a transmite a Jesus,

que a entrega ao Anjo,

que a manifesta a João,

que a comunica aos Servos,

que devem testemunhá-la diante da humanidade.

O Apocalipse é Profecia (1,3), mas não é profecia no sentido de Nostradamus ou dos videntes que entram em ação na véspera de cada Ano Novo. Para estes, a profecia é uma adivinhação, nascida da curiosidade que quer conhecer o futuro. O Apocalipse não deve ser lido como se lá dentro pudéssemos encontrar referências abertas ou veladas ao nosso tempo. Isto seria uma tentativa irreverente do ser humano para penetrar no mundo de Deus e arrancar dele o segredo do futuro. Profecia no sentido do Apocalipse é o contrário. É Deus que, através de Jesus, penetra no nosso mundo, na nossa história, e se dá a conhecer através das palavras de João. Com a ajuda da Palavra de Deus, contida no Antigo Testamento, e do Espírito de Jesus (Jo 14,26; 16,13; Ap 1,10; 4,2), chamado Espírito da Profecia (Ap 19,10), João revela, tira o véu, e nos faz conhecer a ação de Deus na história. Até hoje, as nossas comunidades, animadas pelo Espírito de Jesus e orientadas pela Palavra de Deus, descobrem e partilham entre si a ação deste mesmo Deus, sempre presente na vida e na história do seu povo.

Apocalipse 1,4-8: Saudação inicial: em Nome da Trindade Santa

Nós dizemos: Pai, Filho, e Espírito Santo. O Apocalipse diz: É-Era-Vem; os Sete Espíritos; Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogênito dos mortos, o Príncipe dos Reis da terra. No fim do primeiro século, a doutrina era como uma flor que brotava diretamente da experiência vivida das comunidades. Nestes nomes, João diz o que eles esperavam do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Hoje, para muitos de nós, a doutrina cristã é como a flor que foi cortada da experiência e está guardada no caderno do catecismo. Flor bonita e colorida, mas seca, sem vida.

Apocalipse 1,9-20: “Não tenham medo! Estive morto, mas estou vivo!”

A visão de Jesus ressuscitado é o grandioso painel de entrada do Apocalipse. Nele João transmite a experiência que ele mesmo teve da ressurreição. É o resumo e o centro da mensagem que ele quer comunicar às comunidades cansadas e perseguidas da Ásia Menor. É para que elas possam ter a mesma experiência da presença viva de Jesus ressuscitado no meio delas. Pois só assim serão capazes de superar o medo da morte e de acreditar na vida.

Esta visão inicial nos coloca em contato direto com a linguagem dos símbolos, própria do Apocalipse. É uma linguagem, cujo valor não estão só naquilo que é dito, mas também naquilo que é sugerido e evocado. Por isso, o intérprete não deve querer explicar racionalmente todas as palavras, mas sim fazer o possível para levar o leitor, a leitora, a ter a mesma experiência que está na raiz do símbolo. Convém ler a visão inaugural de Jesus como se contempla uma pintura, como se assiste a um drama, como se ouve uma música. A linguagem simbólica faz com que escritor e leitores sintonizem na mesma freqüência ou con-spiração (ação comum do espírito), e tenta fazer com que a con-spiração se torne em ambos uma in–spiração comum, um chão comum.

A gente talvez não entenda logo o significado de todos os detalhes: túnica longa, cinto de ouro, cabelos brancos, olhos como chamas de fogo, pés de bronze incandescente, voz como o estrondo de cataratas de água, sete estrelas na mão direita, espada afiada de dois gumes saindo da boca, o rosto como sol em pleno brilho do meio dia! Mas, mesmo sem entender, adivinhamos algo de grande e de muito importante para a vida. São imagens poderosas que falam por si. É como acontece com música bonita: todos gostam de ouvir e se sentem bem, mas só pouca gente entende de música. Música é feita não para quem entende, mas para quem gosta dela e se reanima ao ouvi-la! Esta visão de Jesus, colocada no início do livro, é como a obra de arte colocada na entrada da igreja. Toda vez que você entra, terá que olhar de novo, pois a gente não dá conta de abarcá-la de uma vez. Tem que voltar sempre para ver de novo, meditar, até que ela entre em você e lhe comunique a sua mensagem.

A Primeira Palavra de Jesus no Apocalipse: “Não tenha medo! Eu sou o Vivente!” A primeira reação de João é de medo: Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Era a reação normal diante da manifestação de Deus (Dn 10,9; Is 6,5; Ex 3,6). Mas não é só isto! A atitude de medo de João reflete também a situação das comunidades. Ameaçadas por dentro e por fora pelo poder do império e pelas tensões internas, elas estavam prostradas e com medo. Estavam no escuro. Não sabiam que eram luz. Alguém precisava despertá-las e animá-las. Exilado na ilha de Patmos, num momento de desânimo e de prostração, João teve uma forte experiência da ressurreição de Jesus que o reanimou e o fez ressuscitar. Ele sentiu Jesus colocando a mão direita sobre mim assegurando: Não tenha medo. João descreve a sua experiência, para que as comunidades tenham a mesma experiência. Ele quer que, como ele, elas possam sentir a mão de Jesus no ombro e ouvir a mesma voz que lhes diga: Não tenham medo!

O fundamento deste otimismo é a palavra de Jesus: Eu sou o Vivente! Estive morto, mas estou vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da morada dos mortos. É o poder da ressurreição que aqui se manifesta. Por ela a morte está vencida, e vencido também está o poder do império que persegue e mata! Esta frase de Jesus resume a mensagem central do Apocalipse. Com esta mensagem no coração, na mente e nos olhos, as comunidades serão capazes de entender melhor o sentido verdadeiro dos acontecimentos que os fazem sofrer e terão um critério certo e seguro para entender o que vão ler no Apocalipse.

4ª Chave

A SITUAÇÃO DAS SETE COMUNIDADES DA ÁSIA

Apocalipse2,1-3,22

As sete cartas têm todas elas o mesmo esquema que funciona como chave de leitura.

a. Destinatários Todas elas são dirigidas ao anjo da comunidade; o coordenador ou a coordenadora da mesma.

b. Remetente Todas elas se apresentam como palavra de Jesus: Assim diz… (e segue um título de Jesus).

c. Conteúdo Em todas elas, Jesus afirma: Conheço… Primeiro, descreve a situação: o positivo e o negativo de cada comunidade. Em seguida, dá conselhos, orientando, criticando, ameaçando ou aprovando.

d. Aviso Em todas aparece no fim o mesmo aviso: Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas.

e. Promessa Todas terminam com uma promessa final Ao vencedor.

A ordem em que são colocadas as cartas tem um sentido: Tiatira está no centro. Ela recebe a carta mais comprida. Seus problemas devem ter sido os mais comuns a todos. Pérgamo e Sardes vêm logo antes e depois de Tiatira: na primeira, a maioria é boa e um pequeno resto é infiel; na outra, a maioria é infiel e um pequeno resto é bom. Esmirna e Filadélfia, na mesma posição antes e depois de Tiatira, as duas são pobres e fracas, mas não tem defeito. Delas não se pede que se convertam. Das outras todas se pede que se convertam (2,5.16.21; 3,3.19). Éfeso e Laodicéia, a primeira e a última: Éfeso é atuante, Laodicéia é rica, mas ambas decaíram.

Apocalipse 2,1-7 Para a comunidade de Éfeso: Apesar de atuante, você abandonou o primeiro amor

Apocalipse 2,8-11 Para a comunidade de Esmirna: Apesar de pobre, você é rica

Apocalipse 2,12-17 Para a comunidade de Pérgamo: Apesar de perseguida, você não renegou a fé

Apocalipse 2,18-29 Para a comunidade de Tiatira: Apesar do esforço, você deixa em paz os falsos líderes

Apocalipse 3,1-6 Para a comunidade de Sardes: Apesar da fama de estar viva, você está morta

Apocalipse 3,7-13 Para a comunidade de Filadélfia: Apesar da fraqueza, você não renegou o meu Nome

Apocalipse 3,14-22 Para a comunidade de Laodicéia: Apesar de rico, você é infeliz, pobre, cego e nu

As sete cartas oferecem um quadro amplo e variado dos grupos, tendências e doutrinas que existiam nas comunidades da Ásia. Em Éfeso e Pérgamo, havia os seguidores da doutrina dos Nicolaítas (Ap 2,6.15). Em Pérgamo havia, além disso, os seguidores de Balaão (Ap 2,14). Em Éfeso, havia líderes que se apresentavam como apóstolos e não eram (Ap 2,2). Em Tiatira, havia uma profetisa, com o apelido de Jezabel, da qual se diz que seduzia as pessoas e as levava a aderir ao império (Ap 2,20) e a perscrutar os segredos de Satanás (Ap 2,24). Em Esmirna e Filadélfia havia um grupo que se apresentava como judeus e não eram (Ap 2,9; 3,9).

Havia muitas tendências. Não era fácil discernir. A comunidade de Éfeso conseguiu desmascarar falsas lideranças (Ap 2,2). Em Sardes aconteceu o contrário: a comunidade como um todo se desviou e só um grupinho marginal continuou fiel (Ap 3,4). Em Tiatira, o grupo de Jezabel formou uma comunidade paralela (Ap 2,20.24). A comunidade de Laodicéia era rica, auto-suficiente e relaxada (At 3,17), a de Esmirna era pobre mas fiel (Ap 2,9).

O problema de fundo era o confronto cada vez mais forte com a ideologia do império, que era uma das cau­sas principais das tensões e tendências no interior das comunidades. Diante deste quadro ambíguo, era urgente ter alguns critérios de discernimento. É o que João tenta transmitir nas sete cartas e nas visões do Apocalipse.

A Imagem de Jesus nas sete cartas

O pano de fundo das sete cartas é a visão inaugural, onde Jesus aparece no meio das comunidades (Ap 1,9-16). O discurso de Jesus, iniciado durante a visão inaugural (Ap 1,17-20), continua nas cartas, que são apresentadas como palavra de Jesus: “Assim diz.…!”, seguida por um título de Jesus tirado quase sempre da visão inaugural:

1. Éfeso: Assim diz aquele que segura as sete estrelas em sua mão direita, o que anda em meio aos sete candelabros de ouro. Liderança e Presença nas comunidades.

2. Esmirna: Assim diz o Primeiro e o Último, aquele que esteve morto mas voltou à vida. Senhor da história e da vida.

3. Pérgamo: Assim diz aquele que tem a espada afiada, de dois gumes. Juiz, cuja espada de dois gumes é símbolo de discernimento.

4. Tiatira: Assim diz o Filho de Deus, cujos olhos parecem chamas de fogo e cujos pés são semelhantes ao bronze. Perspicácia que discerne tudo e firmeza de quem não cede.

5. Sardes: Assim diz aquele que tem os sete espíritos e as sete estrelas. Presença junto aos coordenadores e às coordenadoras das comunidades e Plenitude do Espírito de Deus.

6. Filadélfia: Assim diz o Santo, o Verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi, o que abre e ninguém mais fecha, e fechando, ninguém mais abre. Coerência, Fidelidade e Poder sobre a vida e a morte.

7. Laodicéia: Assim diz o Amem, a Testemunha fiel e verdadeira, o princípio da criação de Deus. Fidelidade e Coerência, Novidade criadora e Sabedoria divina.

Em cada carta, é evocada a visão inaugural, na qual Jesus colocava a mão sobre João dizendo: Não tenha medo! (Ap 1,17). Assim, lendo, ouvindo e meditando as cartas nas suas reuniões e celebrações, as comunidades sentiam a mão de Jesus no ombro e ouviam dele a palavra de que estavam precisando. Era assim que elas se animavam na fidelidade e na resistência. Esta mesma certeza até hoje nos anima e, como eles, na liturgia repetimos e exclamamos: O Senhor esteja convosco! – Ele está no meio de nós!

A situação das comunidades

Fazia cinqüenta anos ou mais que elas vinham caminhando. O cansaço ia tomando conta (Ap 2,20). Havia a diminuição do primeiro fervor (Ap 2,4). Algumas comunidades pareciam estar muito vivas e ativas, mas por dentro já estavam mortas (Ap 3,1). Outras, vencidas pela rotina, já não eram nem frio nem quente (Ap 3,15-16). A falta de horizonte e a perseguição aumentavam o cansaço (Ap 6,10). Apesar do esforço e da boa vontade, os problemas, em vez de diminuírem, aumentavam sempre mais, e o resultado obtido era tão pouco!

O sistema do império romano estava baseado na escravização dos povos. Através de taxas, tributos, impostos e outros roubos legalizados, drenavam a riqueza dos povos para Roma, o centro do império (Ap 13,16-17; 18,11-20). O acúmulo imenso de riqueza e de poder na capital contrastava com o empobrecimento cada vez maior dos povos na periferia do império. O endividamento progressivo obrigava as pessoas e as famílias a se escravizarem para poder pagar suas dívidas (cf. Mt 18,25).

A maior parte das primeiras comunidades era pobre como aquela de Esmirna (Ap 2,9), e fraca, sem muita força, como aquela de Filadélfia (Ap 3,8). A maioria era de gente pobre (cf. 1Cor 1,26; Tg 2,2-9; 5,1-5). Os muitos conselhos relacionados com escravos mostram que havia também muitos escravos entre os cristãos (1Cor 12,13; Ef 6,5; Cl 3,22; 1Tm 6,1; Fm 10). Na 1ª de Pedro se percebe que muitos eram migrantes e estrangeiros (1Pd 1,1; 2,11).

Aos poucos, pessoas mais ricas iam entrando e as divisões da sociedade penetravam na vida das comunidades, provocando nelas novos e dolorosos conflitos (Tg 2,2-9; 5,1-5; Ap 3,16-17; 1Cor 11,20-22). Por isso mesmo, Lucas insiste no ideal da partilha e da acolhida aos necessitados (At 2,42.44-45; 4,32.34-35).

5ª Chave

APOCALIPSE: ANÚNCIO DA BOA NOVA DE DEUS EM ÉPOCA DE IMPÉRIO

O Apocalipse é Boa Nova porque comunica conforto e esperança a um povo em crise, ameaçado na sua fé. A crise tinha duas causas, ligadas entre si. A externa: a perseguição e as mudanças na sociedade. A interna: a falta de visão e de fé, as divisões e o cansaço. Deus parecia ter perdido o controle da situação. Os opressores pareciam ser os donos da história. Muitos se perguntavam: “Será que vale a pena continuar a participar da comunidade?”

O Apocalipse enfrenta este problema e ajuda o povo a perceber e a combater as causas da crise. Ele tira o véu dos fatos e revela o outro lado, o lado escondido que só a fé é capaz de enxergar, e faz o povo saber que os aconteci­mentos não estão escapando da mão de Deus. Os poderosos parecem ser os donos do mundo, mas, na realidade, o seu poder é limitado por Deus. A Boa Nova do Apocalipse é esta: Deus continua sendo o Senhor da história! Ele conduz o seu povo para a vitória final. Ninguém, por mais forte que seja, consegue mudar o rumo do plano de Deus. Os opressores do povo vão ser derrotados e condenados, todos! A ressurreição de Jesus o garante!

Este anúncio forte e vigoroso desloca o peso da balança. De um lado, enfraquece a carga da perseguição (causa externa). Do outro lado, fortalece o peso da fé (causa interna). O povo se equilibra de novo na vida. Agora, já não é a perseguição que enfraquece a fé, mas sim a fé renovada e esclarecida que enfraquece o poder dos poderosos. A face de Deus reaparece na vida. O povo agradece, explode em cânticos de alegria e se dispõe a resistir. Entoa, desde já, o canto da vitória, como Miriam, irmã de Moisés, depois da travessia do Mar Vermelho. Depois dos Salmos, o Apocalipse é o livro da Bíblia, em que mais se canta! Por isso, qualquer interpretação do Apocalipse feita para meter medo nas pessoas deve ser considerada como errada e falsa! Já não seria Boa Nova para os pobres. Seria o mesmo que usar o sol para molhar ou a água para enxugar!

As várias maneiras de se anunciar a Boa Nova de Deus

No início, os cristãos criaram várias formas para transmitir a Boa Nova de Deus que Jesus nos trouxe: em forma de história (Atos dos Apóstolos), de carta (Paulo), de cântico (Maria, Zacarias), de evangelho escrito (Mateus, Marcos, Lucas, João), e em forma de apocalipse.

Quem transmite uma mensagem em forma de cordel, deve conhecer o ritmo da poesia do povo. Quem o faz em forma de história em quadrinhos, deve saber desenhar. Quem o faz em forma de uma canção, deve entender de música. E quem anunciava a Boa Notícia de Deus em forma de apocalipse, o que ela ou ele devia saber ou fazer? Costumava fazer as coisas que caracterizam o jeito próprio dos apocalípticos transmitirem sua mensagem ao povo perseguido das comunidades: (1) expressar tudo por meio de visões e símbolos; (2) dividir a história em etapas para situar o momento presente; (3) usar linguagem radical de oposição entre o bem e o mal. Entender bem estas três coisas ajudará a esclarecer grande parte das dificuldades que o Apocalipse costuma provocar em nós. Vamos ver de perto estas três chaves. É o que vamos ver de perto nas próximas três chaves

6ª Chave

Primeira Característica

EXPRESSAR TUDO POR MEIO DE IMAGENS E SÍMBOLOS

João teve muitas visões, algumas delas muito estranhas. Ele viu animais com seis asas, cobertos com olhos ao redor e por dentro (Ap 4,8); um cordeiro com sete chifres e sete olhos (Ap 5,6); cavalos com cabeça de leão e rabo de escorpião (Ap 9,17.19), uma besta-fera com sete cabeças e dez chifres (Ap 13,1), cujo número é 666 (Ap 13,18); uma cidade, bonita como uma noiva que desce do céu (Ap 21,2), e assim por diante! Ele enche o Apocalipse de números: 3, 4, 10, 1000 e suas combinações: 7 (3+4); 12 (3×4); 40 (4 x10); 144.000 (12x12x1000).

É um outro mundo! Estranho, irreal, diferente do nosso! E o que dizer do número 666 da Besta Fera? (Ap 13,18). Há muitas interpretações. A mais provável é que se trate de uma alusão ao rei Salomão que, por ano, tirava 666 talentos de ouro, i.é, 23 toneladas, dos agricultores da Palestina (1Reis 10,14). Além disso há o uso de números para indicar as letras. Por exemplo, VI significa seis. Assim, o número de C-e-s-a-r – N-e-r-o-n é 666.

Como é que visões tão estranhas podem clarear a situação do povo? Por que João não usa a linguagem comum como, por ex., Lucas faz nos Atos e Paulo nas cartas? O que será que o Apocalipse quer alcançar com estas visões? Vamos dar aqui seis respostas.

1. Trazer conforto e coragem na luta

O Apocalipse de João traz visões grandiosas: Jesus ressuscitado (Ap 1,12-18), o Trono de Deus (Ap 4,2-8), o Cordeiro imolado (Ap 5,6-14), a Mulher e o Dragão (Ap 12,1-6). Talvez não entendamos logo o seu significado em todos os detalhes. Mesmo assim, experimentamos algo. É como o menino que passeia com o pai. O menino nada entende do que seja força e proteção. Mas ele sente a força e a proteção do pai, pois vai tranqüilo, sem medo, ao lado dele! Assim, a visão de Jesus ressuscitado (Ap 1,12-18) não diz o que é força e proteção. Mas faz o povo sentir a força e a proteção de Jesus ressuscitado, caminhando com ele, ao lado dele!

2. Transformar a saudade em esperança

As visões do Apocalipse de João estão cheias de imagens tiradas do Antigo Testamento. A história do povo é lembrada ou evocada, às vezes, por uma única palavra. Algumas visões nada mais são do que construções novas, feitas com os velhos e já conhecidos tijolos do AT. Por que as visões recorrem tanto ao Antigo Testamento? O AT era o passado do povo. Passado bom, onde Deus tinha manifestado a sua presença com grandes milagres. Muitos lembravam o passado apenas para curtir a saudade: “Antigamente sim! Mas hoje…! Deus não aparece mais!” Ora, as visões recheadas com frases e lembranças do Antigo Testamento, transformam este passado num espelho. É como se estivesse acontecendo de novo, agora! Elas despertam a memória, desobstruem o caminho da fonte que existe dentro do povo e, aos poucos, a energia do passado vai acordando, o véu vai caindo, o povo se reencontra e a caminhada se ilumina: “Deus continua agindo! O mesmo Deus de antigamente! Ele não mudou de lá para cá! Ele está conosco!” A saudade se transforma em esperança: Não podemos desanimar!

3. Comunicar ao povo algo da paz de Deus

Às vezes, pessoas medrosas e não engajadas usam o Apocalipse como pretexto para não entrar na luta: “Deus faz tudo! A nós cabe assistir e esperar!” Mas este não era o caso das comunidades da Ásia para as quais João escrevia o seu livro. Não havia o risco de elas usarem o Apocalipse como pretexto para não entrar na luta, pois já estavam na luta, há muitos anos. O problema delas era outro: como fazer para não desanimar da luta, pois estavam meio perdidas e desanimadas na frente de batalha (Ap 6,10). O Apocalipse de João achou uma resposta. Por meio das visões, João transporta as comunidades para dentro do céu (Ap 4,1), para perto do trono de Deus (Ap 4,2-11), onde está o quartel general do Cordeiro que lidera a batalha (Ap 14,15; 17,14; 7,9-17). Lá do alto, do centro das operações, elas contemplam a luta com os olhos de Deus. Descobrem que as ameaças e pragas não são para os oprimidos, mas sim para os opressores do povo, e experimentam que, apesar de difícil, a luta já está ganha (Ap 14,9-12; 17,14). Assim, as visões comunicam algo da paz com que Deus, sereno, lá do alto, comanda a luta contra a injustiça e a opressão (Ap 11,14-18; 12,10-11). As comunidades fincam a sua raiz em Deus e a tempestade das perseguições já não consegue arrancá-la. Elas voltam para a luta bem mais animadas, com sabor de vitória.

4. Defender-se contra os opressores do povo

Em época de perseguição, todo cuidado é pouco. Dizer abertamente que o império romano era o grande inimigo a ser combatido podia dar prisão. João achou um jeito para dizê-lo de outra maneira. Por exemplo, para explicar o mistério da grande prostituta, sentada sobre a besta-fera com sete cabeças (Ap 17,3), ele diz: “Aqui é preciso ter inteligência para poder discernir: as sete cabeças são sete colinas sobre as quais a mulher está sentada” (17,9). Todos sabiam que a cidade de Roma, sede do Império, estava construída sobre sete colinas. Para o bom entendedor, meia palavra basta! Em outro lugar, João diz: “Quem tem inteligência é capaz de calcular o número da besta, pois é um número de gente. Seu número é 666!” (Ap 13,18). De acordo com o número de cada letra, o leitor calculava e descobria a mensagem: a besta é o imperador de Roma que persegue os cristãos. As visões com seus símbolos eram um meio para esclarecer o povo perseguido e defendê-lo contra os seus opressores. Elas revelavam a sua mensagem aos oprimidos e a escondiam aos opressores. Deus manda ser bom, mas não bobo!

5. Fazer-se entender pelo povo das comunidades

Um cartaz com desenhos transmite muito mais do que só falar. Uma dramatização é mais instrutiva do que um sermão. Uma imagem diz muito mais do que uma frase. Para se expressar, o povo prefere desenhos, teatro, imagens, cartazes e comparações. O mesmo vale para o Apocalipse. O Apocalipse não é uma sala de conferências, onde o povo entra pa­ra escutar alguém falar. Parece muito mais com um salão enorme, cheio de imagens e retratos, pinturas e quadros, pendurados nas paredes das suas páginas. O povo pode entrar e andar por aí, à vontade, observando, conversando, rezando. Pode andar onde quiser. Pois cada pintura, cada visão, tem a sua própria mensagem. Seguindo, porém, a ordem em que João colocou as visões, aproveitará mais. Pois aos poucos, irá percebendo a mensagem do conjunto. Um quadro começa a esclarecer o outro quadro e o todo se ilumina.

6. Uma chave para ler a realidade de outra maneira

Um símbolo revela uma dimensão mais profunda que a olho nu não se vê. Símbolo vem de sym-ballo: juntar, associar. O seu oposto é dia-ballo: separar. Um símbolo associa dois elementos, distantes entre si. Através desta associação, o elemento mais familiar evoca e esclarece o outro menos conhecido e menos palpável. Por exemplo, a realidade bem familiar indicada pela palavra porta ajuda a entender o que Jesus significa para a vida das comunidades: “Eu sou a porta!” (Jo 10,9). O mesmo vale para videira (Jo 15,1), caminho (Jo 14,6), e tantos outros símbolos. A força de um símbolo consiste na sua capacidade de evocar que depende de muitos fatores. Depende da cultura: a imagem do Cordeiro fala mais para o povo do interior, do que para operários da periferia de São Paulo. Depende da história: a palavra Quilombo fala mais para negros do que para brancos. Depende do clima e da região: a imagem da água evoca coisas diferentes para um nordestino que vive na seca, e para o índio que vive na Amazônia. Um símbolo atua sobre as pessoas mesmo sem elas se darem conta. Como hoje, assim naquele tempo, a máquina de propaganda do império fazia passar os seus interesses por meio de símbolos veiculados através dos meios de comunicação da época. Os símbolos do Apocalipse têm como objetivo não só descrever a experiência que João teve em sonhos, mas também e sobretudo fazê-la acontecer nos outros. Um símbolo vale mais pela experiência e pela ação que provoca do que pelo conteúdo que comunica. Ele quer é despertar a criatividade.

Breve reflexão sobre a natureza dos símbolos

As visões aconteceram do jeito como João as descreve? Ele viu exatamente tudo aquilo que ele descreve? Na raiz das visões existe uma experiência profunda de Deus e da vida. Experiência que funciona como o clarão de um raio no meio de uma noite escura. De repente, por um segundo, tudo se clareia e a pessoa enxerga. Depois do clarão, a escuridão parece mais escura, mas, por causa do clarão, na memória da pessoa, todas as coisas aparecem ligadas entre si por aquela claridade azulada, própria dos raios. Da mesma maneira, a experiência de Deus em forma de visão, como que por um segundo, clareia todas as coisas. Os acontecimentos que antes pareciam escuros e desconexos, agora tomam sentido e rumo. Na memória do visionário, todas as coisas, do céu e da terra, do passado, do presente e do futuro, tudo se liga e se esclarece dentro do único projeto de Deus. Em seguida, conhecendo o povo das comunidades, a sua cultura e história, a situação difícil em que se encontram, João constrói a visão, tentando reproduzir por escrito aquilo que ele mesmo experimentou. Não se trata de uma descrição fotográfica. O objetivo não é tanto informar o conteúdo que ele mesmo viu, mas sim fazer acontecer nos outros a mesma experiência que ele mesmo teve. Parece mais com a experiência do poeta que tenta colocar em palavras a inspiração que ele teve. Como dizia um grande artista a respeito da sua obra: 10% de inspiração, 90% de transpiração.

Na descrição da visão inaugural (Ap 1,12-16), João apresenta Jesus ressuscitado. Apresentação solene de muita majestade, que responde à pergunta: “Quem é Jesus para nós?” A esta pergunta você pode responder com uma frase e dizer: “Jesus é filho de Deus, Messias, Sacerdote, Juiz, Senhor da história, presente na comunidade, vivo para sempre!” Dizendo isto, você terá dito a mesma coisa que João. Mas João não respondeu com uma frase, mas sim com uma visão. As duas respostas, a frase e a visão, dizem a mesma coisa, mas de maneira diferente. Na frase, é você quem fala sobre Jesus; na visão o próprio Jesus se apresenta. Na frase, Jesus aparece parado dentro de um discurso; na visão, ele aparece agindo. A frase traz um relatório; a visão pinta um quadro. A frase define as margens do rio da doutrina; a visão conta uma experiência que alimenta a fonte do rio. A frase apela para a inteli­gência; a visão envolve o coração e o sentimento, e provoca a imaginação. A frase traz entendimento; a visão comu­nica força e coragem. Na frase, você terá dito uma grande verdade; na visão, João anunciou a Boa Nova de Jesus!

A linguagem dos símbolos expressa a vivência da fé dos pobres. É a linguagem que sai do silêncio dos silenciados, e conduz ao silêncio dos libertados diante de Deus. Como diz a poesia: Diante da vida do povo sofrido a gente não fala só sabe calar. Esquece as idéias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar. É a linguagem da luta, da denúncia profética, do povo que não sabe ler. Linguagem da poesia, da atitude sapiencial mais solta, da mística, da contemplação, da celebração, do Amor. Convém ler o Apocalipse como se conversa com um amigo.

7ª Chave

Segunda Característica

DIVIDIR A HISTÓRIA EM ETAPAS PARA SITUAR O MOMENTO PRESENTE

Uma comparação. Você está viajando de Belo Horizonte para Rio de Janeiro. É noite, perto da madrugada. Você estava dormindo e acorda. Conforme os seus cálculos, o ônibus já devia estar chegando no Rio de Janeiro. Na realidade, não há nenhum sinal de cidade lá fora. Tudo escuro! Além disso, em vez de asfalto, é estrada de chão, cheio de buracos, coisa que não existe entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Preocupada, você se levanta e pergunta ao motorista: “Onde estamos? Vai demorar para chegar?” Ele responde: “Uma ponte quebrada obrigou a gente a fazer uma volta de quase 50 quilômetros por esta estrada de chão. Daqui a pouco alcançamos de novo o asfalto. Vamos chegar no Rio com uma hora de atraso”. Aí você se tranqüiliza e diz: “Obrigada! Então está tudo certo. Falta pouco. Graças a Deus!” Fora de você, nada mudou. Era a mesma escuridão, a mesma estrada de chão, cheia de buracos. Dentro de você, tudo mudou. Você se situou, graças à palavra do motorista!

O apocalíptico é como o motorista do ônibus: ajuda o povo a se situar na caminhada, feita no escuro das perseguições. A caminhada já vem de longe. Ninguém sabe quanto tempo ainda vai demorar nem por onde o povo está andando. Deus perdeu o volante, assim parece. Angustiados perguntam: “Onde é que estamos? Vai demorar muito?” (Ap 6,10). O interesse do povo que sofre não é saber como vai ser o futuro daqui a cem ou a quinhentos anos, mas sim como vai ser amanhã: “Vai ou não vai ter perseguição? Vamos ou não vamos ter comida?” O apocalíptico explica quantas são as etapas da caminhada do plano de Deus e informa em que etapa a comunidade se encontra no momento da perseguição. Como é que ele faz isto?

O apocalíptico vive num tempo de crise e de perseguição, no meio de um povo sem poder. Para ajudá-lo ele volta atrás na história e, por meio de visões, se transporta para o passado, para o início do plano de Deus ou para o início de alguma etapa importante deste plano. E de lá, do fundo da história, ele olha para a frente e descreve quantas são e como vão ser as etapas do plano de Deus, desde aquele momento inicial até o fim dos tempos. Assim, na realidade, algumas destas etapas já pertencem ao passado; uma etapa está acontecendo no momento presente em que ele está escrevendo, e outras etapas ainda vão acontecer no futuro. Quase sempre, a etapa presente, em que o povo sofre a perseguição, encontra-se imediatamente antes do fim. Deste modo, as comunidades perseguidas se situam e se animam: “Falta pouco! Estamos quase no fim! Vamos continuar na caminhada!”

Por isso, geralmente, os escritos apocalípticos são pseudônimos. Seus autores buscam uma figura significativa no passado, a partir da qual olham para o futuro. Basta olhar os nomes de alguns apocalipses que surgi­ram nos primeiros séculos: apocalipse de Adão, Set, Sem, Abraão, Moisés, Elias, Sofonias, Baruque, Daniel, Zacarias, Estêvão, Pedro, Tomé, Maria, Tiago, Paulo, João. Vejamos três exemplos deste procedimento:

1. Um exemplo tirado do livro de Daniel: A visão do Filho do Homem (Dn 7,1-28)

O autor de Daniel 7,1-28 vive no tempo dos Macabeus (167 aC). É o período do império helenista, época da grande perseguição do rei Antíoco IV (175-164) contra o povo judeu. A perseguição criou uma situação de deses­pero. Para comunicar a sua mensagem de esperança, o autor do livro de Daniel se transporta para o passado, época do exílio (550 aC), o “primeiro ano de Baltazar, rei da Babilônia” (Dn 7,1). Estando lá no passado, ele tem uma visão, que lhe faz ver as etapas do plano de Deus, desde o exílio da Babilônia até o fim da perseguição que o povo estava sofrendo. Nesta “visão noturna” (Dn 7,2), aparecem, um depois do outro, os quatro grandes impérios, todos com aparência de “animais monstruosos”: leão com asas de águia (império da Babilônia) (Dn 7,4), urso com três costelas entre os dentes (império dos Medos) (Dn 7,5), onça com quatro asas e quatro cabeças (império dos Persas) (Dn 7,6), e uma “fera medonha e terrível” (império dos gregos iniciado com Alexandre Magno) (Dn 7,7-8). Os impérios têm aparência de animais porque são animalescos, brutais, desumanos. Eles perseguem, desumanizam e matam a vida. O quarto império dos gregos, o da “fera medonha e terrível”, persegue e mata os “santos do Altíssimo” (Dn 7,21.25). É aqui que o povo perseguido do ano 167 se reconhece: “Estamos na 4ª etapa!” E imediatamente vem a pergunta: “Quanto será que falta até que chegue o fim da perseguição?” A resposta vem em seguida.

Depois dos quatro reinos anti-humanos, chega a quinta e última etapa do Dia de Javé. O céu se abre e aparece o Trono do julgamento divino: “Um Ancião se assenta, vestido de veste branca como a neve, cabelos brancos como a lã” (Dn 7,9-10). A simples aparição do Trono do Juiz faz desaparecer os reinos animalescos. Diante do olhar divino, o mal desaparece como gelo diante do sol! Eles são julgados, condenados e destruídos (Dn 7,11-12). Aparece, então, o quinto reino, o Reino de Deus, com aparência não de um animal mas sim de gente, de “um Filho de Homem”, que recebe todo o poder (Dn 7,13-14). Pois o Reino de Deus é um reino humano, que promove a vida. É o contrário dos reinos animalescos! A figura do Filho do Homem representa o povo de Deus, o Povo dos Santos do Altíssimo (Dn 7,22. 27; cf. 7,18). É uma figura comunitária ou coletiva.

Conforme esta maneira de interpretar a história, a perseguição já não aparece como uma fatalidade, mas é vista como um tijolo que contribui para a construção do Projeto de Deus. É etapa necessária para se chegar ao fim, como a dor de parto é caminho necessário para o nasci­mento da vida nova. As comunidades perseguidas descobrem que a história continua na mão de Deus e que falta muito pouco para a chegada do fim da perseguição, pois elas já se encontram na última etapa pouco antes da manifestação da vitória final do Filho do Homem.

O Apocalipse é como um espelho, onde o povo descobre a que altura está a caminhada. A escuridão da per­seguição se ilumina por dentro, o véu vai caindo, as comunidades se situam e a face de Deus reaparece: “A cami­nhada está conforme o plano de Deus. É ele que nos conduz! Falta pouco para chegar ao fim! Vamos cantar e conti­nuar a resistir!” Elas mantêm a cabeça erguida, não se desumanizam e continuam irradiando esperança, fé e amor!

2. Um exemplo em forma de desenho, tirado do Apocalipse de João (Ap 6,1-17)

Trata-se do texto, onde João descreve a abertura dos sete selos (Ap 6,1-17)

3. Um exemplo de hoje: Os sete selos da história do Brasil narrada nos anos 80

Por causa de tantas frustrações dos últimos sessenta anos da nossa história, muita gente desanimou e já não sabe mais como caminhar. O sofrimento do povo é grande. Alguém, vivendo no ano 2000, fez como João e voltou para algum ponto do nosso passado. Estando lá no passado, abriu o livro dos sete selos da história do Brasil e começou a descrever as sete etapas da nossa história. Veja se você se reconhece nestes fatos:

“Tive uma visão. Após um período de cinco anos de guerras, matanças, fome e destruição atômica, a paz se estabeleceu no mundo inteiro. Todo mundo respirou aliviado, dando graças a Deus.

Então, foi aberto o Primeiro Selo. E aquele que detinha o poder foi destituído e se matou para poder viver no coração do povo!

Então, foi aberto o Segundo Selo. E aqueles que foram instituídos para defender o povo e manter a ordem, enganaram o povo e estabeleceram a desordem por três vezes sete anos.

Então, foi aberto o Terceiro Selo. E aquele que dizia ter vindo para derrubar a desordem e trazer de volta a Ordem e o Progresso, na hora de tomar posse foi derrubado pela doença e o país ficou entregue por cinco vezes doze meses, sem possibilidade de recuperação.

Então, foi aberto o Quarto Selo. E aquele que tinha sido indicado pelos pobres e excluídos para criar um mundo mais justo e mais fraterno, com paz e prosperidade para todos, foi derrubado pela mentira colorida e país caiu nas trevas.

Então, foi aberto o Quinto Selo. Quando abriram o quinto selo, ouvi a voz do povo, debaixo do altar da Pátria Real, prisioneiro do salário mínimo imposto pelo FMI, gritando em alta voz: “Até quando, Senhor?” E foi lhes dito: “Aguentem mais um pouco de tempo, pois logo virá o fim e a paz será restabelecida para sempre!”

Então foi aberto o Sexto Selo. Um tumulto se fez no céu. O sol escureceu, a lua sangrou, a terra tremeu, o mar transbordou, as estrelas caíram. Dos quatro cantos do universo avançavam os anjos gritando: “Enfim será restabelecida a Ordem que Deus quis quando criou o mundo!” Os grandes do mundo tremeram nos seus palácios e uma voz gritou: “É o começo do fim!”

Quando abriram o Sétimo Selo, um silêncio percorreu a terra. O universo inteiro cantava um canto novo: “Amém! Aleluia! Nós te damos graças, Senhor, porque assumiste teu grande poder e passaste a reinar. Enfim, a injustiça foi eliminada e destruída. A reforma agrária foi feita. Agora todos tem o seu lote, sua casa, seu quintal. Acabou-se a violência. Todos vivem com segurança, sem medo de ser feliz. O céu baixou entre nós! A paz chegou e o povo é feliz para sempre! Amém! Aleluia!”

8ª Chave

Terceira Característica

USAR LINGUAGEM RADICAL NA LEITURA DOS FATOS

Nas visões do Apocalipse, não há meio termo. Só contraste! De um lado, o mal; do outro, o bem. De um lado, o Dragão e a besta-fera (Ap 13,1-18); do outro, o Cordeiro e o seu exército (Ap 14,1-5); de um lado, Roma, a grande prostituta (Ap 17,1-18); do outro, Jerusalém, a noiva do Cordeiro (Ap 21,1-22,5). João sabe muito bem que, na vida real, as coisas não são assim. Sabe que o bem e o mal existem misturados até na vida das comunidades. Sabe que, no imperio romano, tem muita coisa boa, muita gente boa. Por que, então, nas visões ele fala como se, de um lado, só tivesse coisa boa e, do outro, só coisa ruim? Parece extremista e radical.

1. O problema político

A situação política estava muito confusa. Uns quarenta anos antes, Paulo tinha escrito aos cristãos de Roma que deviam obedecer às “autoridades constituídas” (Rm 13,1), “de modo que aquele que se revolta contra a autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus” (Rm 13,2). Nos Atos dos Apóstolos, Lucas tinha apresentado o império romano como simpático aos cristãos (At 13,7; 18,12-15; 19,35-40; 25,13-27). Mas a situação tinha mudado. Agora, essas mesmas “autoridades constituídas” estavam perse­guindo os cristãos. Elas até se infiltravam nas comunidades para forçá-las a adorar os falsos deuses do império (Ap 2,14.20). Quem era o culpado por essa situação? O império em si, ou apenas alguns maus funcionários? As coisas não estavam claras. Havia várias opiniões. Deve ter havido muita discussão e até brigas em torno desse assunto da política!

No Apocalipse, João toma posição e dá a sua opinião. Para ele, o culpado não são alguns maus funcio­nários do império, mas sim o império em si: a sua organização econômica e a sua pretensão de ser o senhor do mundo (Ap 13,1-18; 18,2-20). Por isso, ele condena radicalmente qualquer tentativa de aliança com o império.

2. A maneira de analisar a realidade

O Apocalipse aprecia e avalia as coisas a partir do futuro, isto é, a partir da contribuição que elas estão dando para o triunfo final do bem e da justiça. A vitória já está certa, garantida pelo poder de Deus (Ap 11,17-18; 21,6-8.27; 22,3-5). Aquilo que contribui para a vitória é bom, vem de Deus. Aquilo que impede a vitória não presta, vem do mal, do diabo. Ora, o império romano, do jeito que estava organizado, não estava contribuindo para a vitória do bem e da justiça. Pelo contrário! Impedia a vitória, pois perseguia as comunidades que queriam contribuir e promover a vida! Por isso, na descrição que faz do império (Ap 13,1-18) e da cidade de Roma (Ap 17,1-18), João não aponta nada de bom. Tudo aí é maldade! O império romano é obra do Dragão (Ap 13,1-2), é vômito de satanás (Ap 12,15). A cidade de Roma, a grandiosa sede do império, capital do mundo, não passa de uma grande prostituta que leva o mundo inteiro para a perdição (Ap 17,1-2).

Comparando. O império é como um navio imenso navegando no mar. No navio tem coisas boas e ruins. Tudo misturado. Mas o navio está sendo usado para fazer guerra. Está navegando em direção ao litoral para bombardear a população indefesa. Este rumo do navio está totalmente errado e, por isso, tudo que está no navio se orienta para o mal. O que João condena não é o bem que existe no navio do império, mas sim o rumo errado do mesmo. Tudo está sendo usado e organizado para perseguir os cristãos indefesos que querem defender a vida.

João quer alertar os cristãos. Eles não podem ser ingênuos e alimentar um regime, cuja organização é contra o Evangelho, contra a vida (Ap 18,4). Não podem permitir que a falsa propaganda penetre nas comunidades (Ap 2,14.20). Devem, ao contrário, agüentar firme na sua luta e resistir, mesmo até à morte (Ap 2,10), apesar das perseguições (Ap 3,10-11). É nesta luta humilde e penosa das comunidades que está a semente da futura vitória do bem e da justiça (Ap 2,7.11.17.26; 3,5.12.21). Resistindo a todo custo e não se deixando desviar nem manipular, elas serão o exército do Cordeiro que enfrenta o dragão do Império (Ap 14,1-5) e o vencerá (Ap 17,14).

É por tudo isto que João fala em termos radicais. É uma forma de fazer análise da realidade para ajudar os cristãos a enxergar com clareza a política do império romano e a se definir diante da situação. Hoje em dia, diante da propaganda do sistema neoliberal faz falta um apocalipse que nos ajude a fazer uma leitura um pouco mais crítica da realidade, questionando os rumos do atual império.

9ª Chave

LIMITES, PERIGOS E DESVIOS DO MOVIMENTO APOCALÍPTICO

1. Perigo de imobilismo e fatalismo

O movimento apocalíptico ensina e sugere que o Plano de Salvação já está pronto e definido. Por isso, corre o perigo de alimentar o fatalismo que impede ou desaconselha a participação das pessoas. Assim, na comunidade de Tessalônica, muitos cruzavam os braços e ficavam em cima do muro, sem comprometer-se. “Se Jesus vem logo, para que trabalhar ainda?” (cf. 2Ts 3,11). O mesmo fazem hoje os que, em nome do evangelho, recusam ou condenam a participação na transformação da sociedade. A resposta de Paulo é clara: “Quem não quiser trabalhar, também não coma” (2Ts 3,10)!

2. Perigo de isolamento e de alienação

O movimento apocalíptico ensina que os pobres, perseguidos e ameaçados pelo império, são o povo eleito de Deus a ser salvo no Dia de Javé. Por isso, este “povo eleito” corre o perigo de considerar-se um “povo privile­giado”, os únicos eleitos a serem salvos! Eles sofrem a tentação de se isolar no seu privilégio e de tratar os outros com uns pobres condenados! Em vez de realizarem a sua missão de “servir à humanidade”como “luz das nações”, passam o tempo can­tando, esperando pela vinda de Jesus, tentando puxar todos para dentro da sua igreja ou do seu grupo. Esta atitude transpa­rece nos discípulos, depois da ascensão de Jesus. Ficavam olhando para o céu, esquecendo a missão do anúncio (At 1,11). A recomendação do livro dos Atos dos Apóstolos é clara: “Deixe na mão de Deus a preocupação com o fim do mundo, e vá pelo mundo para dar testemunho do Evangelho” (cf. At 1,7-8)!

3. Perigo da manipulação que usa o Apocalipse para meter medo no povo

A experiência de Deus é um mistério fascinante de amor que atrai. Ao mesmo tempo, ela nos faz sentir nossa pequenez e pecado. No Apocalipse, a experiência de Deus se revela em visões que anunciam catástrofes. Muita gente, inclusive Daniel e João, ficam com medo diante destas visões (Dn 7,15; 8,17; Ap 1,17). Há pessoas que usam estes textos para meter medo nos pobres. Manipulam as visões do Apocalipse para dominar as consciências atra­vés da ameaça do castigo. Fazer isto é uma forma de idolatria. Mas Deus não quer que o anúncio do castigo para os maus cause medo nos bons. Sem cessar manda repetir o apelo: “Não tenham medo” (Ap 1,17)!, “Não chore” (Ap 5,5)! Por causa dos eleitos, Deus até abreviou as dores do fim dos tempos (Mc 13,20).

4. Perigo de fundamentalismo.

Nem sempre o vidente entende a visão que recebe (Ap 7,14; Dn 8,15). Esta obscuridade das visões junto com a situação de sofrimento em que se encontram as pessoas traz consigo o perigo do fundamentalismo que interpreta tudo ao pé da letra. “O fundamentalismo é uma grande tentação que, em épocas de incerte­za e de inseguran­ça, se instala na mente de muita gente. Ele separa o texto da vida e da história do povo e o absolutiza como sendo a única manifestação da Palavra de Deus. A vida, a história do povo, a comunidade, já não teriam mais nada a dizer sobre Deus e a sua Vontade. É a ausência total de consciência crítica. O funda­mentalismo distorce o sentido da Bíblia e, na sua interpretação, alimenta o moralismo, o individualis­mo e o espiritualismo. É uma visão alienada que agrada aos opressores, pois impede que os oprimidos tomem cons­ciência da iniquidade do sistema montado e mantido pelos poderosos” Recusando o pensa­mento crítico e o bom senso, o fundamentalismo pode transformar-se em causa de tragédias. Por exemplo, durante o cerco de Jerusalém no ano 70 depois de Cristo, grupos apocalípticos luta­vam entre si, exterminando-se mutuamente. Depois da destruição de Jerusalém, os sobreviventes comete­ram suicídio coletivo em Massada. No século XX já tivemos o suicídio coletivo de vários grupos fundamentalistas. O documento da Pontifícia Comissão Bíblica da igreja católica, “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, pu­blicado em 1993, condena fortemente os desvios e os perigos do fundamentalismo.

10ª Chave

AS TENDÊNCIAS NA INTERPRETAÇÃO DO APOCALIPSE

1. O Apocalipse prediz o desenrolar da história

O Apocalipse é visto como uma profecia da história. Prediz as etapas do Projeto de Deus, desde o seu começo até o fim. Assim pensava, por exemplo, Santo Agostinho. Os que se orientam por esta teoria, interpretam as visões como descrições antecipadas dos grandes acontecimentos da história da Igreja e da humanidade. Eles encontram aí dentro alusões, por exemplo, à explosão da bomba atômica, ao avanço e implosão do comunismo, ao atentado ao Papa, aos terremotos, às guerras, aos problemas ecológicos, etc. Tudo parece previsto. Esta maneira de ler o Apocalipse provoca a curiosidade e levou Nostradamus a elaborar suas teorias e profecias.

2. O Apocalipse fala do fim do mundo

Para outros, o Apocalipse não descreve o desenrolar da história, mas sim o fim dela. Isto é, fala só das coisas que vão acontecer no fim dos tempos, imediatamente antes da vinda de Jesus. É o que pensam muitos grupos pentecostais. Eles se consideram “os santos dos últimos dias”, vivendo no fim dos tempos, prontos para acompanhar Jesus, quando ele vier nas nuvens. Daí o seu grande interesse pelo Apocalipse que é visto como um “aviso prévio” de Deus à humanidade. Eles dizem: “De 1000 passou! De 2000 não passará!” As vagas são poucas: só 144.000 assinalados. As suas interpretações causam medo em muita gente.

3. O Apocalipse quer animar as Comunidades do fim do primeiro Século

O Apocalipse não foi escrito para predizer as etapas da história, nem para descrever o fim do mundo, mas sim para iluminar a situação sofrida das comunidades perseguidas do fim do primeiro século. Época de Domiciano (81-96). Quer ajudá-las a entender o que estava acontecendo e, assim, reanimar sua fé, sua esperança e seu amor. Quer animar, consolar, situar e clarear. Até hoje, as comunidades perseguidas experimentam tal conforto na leitura do Apocalipse.

4. O Apocalipse tira Raio-X da vida humana

Outros dizem que o Apocalipse não se refere à situação das comunidades do fim do primeiro século, nem descreve o desenrolar das etapas da história, nem fala do fim do mundo. Não se refere a nenhuma época determinada da história, mas sim a todas as épocas e a todos os acontecimentos, tanto de ontem como de hoje e de amanhã, e procura revelar neles uma dimensão mais profunda. Ajuda os leitores a não parar na superfície dos fatos, mas a olhar tudo pelo lado de dentro e descobrir a ação de Deus em tudo que acontece. Ter uma consciência mais crítica.

Estas quatro tendências não se excluem mutuamente. Podem até completar-se. Importante é o acento que se dá. Colocamos o acento na terceira. Partimos da convicção de que o Apocalipse foi escrito para animar as comunidades perseguidas da Ásia Menor do fim do primeiro século. Esta maneira de interpretar predomina entre os estudiosos hoje em dia. Ela é nossa principal chave de leitura que será esclarecida e comprovada ao longo dos roteiros e subsí­dios.

Esta variedade de opiniões mostra e confirma que uma obra de arte é sempre maior que o seu intérprete. O poeta é maior que o seu crítico literário. O Apocalipse de João é maior que as teorias que o interpretam. O seu sentido não se esgota em nenhuma delas. As interpretações passam. A obra permanece! Isto obriga o intérprete a ser humilde.

11ª Chave

DESTINATÁRIOS, AUTOR E HISTÓRIA DO TEXTO DO APOCALIPSE

1. Época e Destinatários

O Apocalipse foi escrito e redigido entre os anos 60 e 100. Lendo nas entrelinhas das sete cartas e colhendo as informações do resto do livro, obtém-se o seguinte quadro da situação em que se encontravam as sete comunidades: perseguição por parte do império, infiltração da ideologia imperial nas comunidades, invasão de doutrinas estranhas, divisões internas causadas por falsas lideranças, conflito crescente e doloroso com os irmãos judeus e, por fim, cansaço da caminhada.

É para este povo que João escreve o seu livro. Como vimos, entre eles havia os fracos e os pobres que continuavam firmes na fé e na luta; havia os que estavam perdidos, sem enxergar o rumo; havia os que misturavam as religiões sem entender direito o seu sentido; havia os acomodados e os ricos que tinham caído na rotina. Mas todos precisando de uma palavra de esclarecimento, de conforto, de crítica ou de coragem!

2. Autor e Motivos da carta

O autor se apresenta: “Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação” (Ap 1,9). Ele não invoca nenhum título, nem de bispo, nem de sacerdote, nem de evangelista, nem de apóstolo. O título que vale é: “Irmão e companheiro na tribulação”. Sendo ele mesmo um perseguido, conhece por dentro o drama dos companheiros e das companheiras. Por isso tem condições de animá-los.

O nome João aparece 4 vezes: três vezes na introdução (Ap 1,1.4.9) e uma vez na conclusão (Ap 22,8). Quem é este João? É o Apóstolo? É o autor do quarto Evangelho? Uma tradição do II século identi­fica-o com o Apóstolo do mesmo nome. Este seria o autor do quarto Evangelho e do Apocalpse. Outra tradi­ção, relatada por Eusébio, historiador do IV século, diz que se trata de um “ancião” (presbítero), e o dis­tingue do Apóstolo e do Evangelista. É difícil chegar a uma conclusão. Talvez seja o seguinte. Como vimos, é uma característica do gênero literário apocalíptico o autor se esconder atrás do nome de alguma persona­lidade importante do passado. É possível que o autor tenha se escondido atrás do nome do apóstolo João. Pois a memória deste apóstolo era bem viva na Ásia Menor, onde foi escrito o nosso Apocalipse.

Ao que tudo indica, “João” era coordenador das comunidades, pois, conforme transparece nas car­tas, ele está bem por dentro da situação de cada uma delas(Ap 2-3). Tem consciência de ser porta­dor de uma profecia por parte de Deus para as Comunidades(Ap 22,9-10). Ele mesmo encarnou a Palavra de Deus em sua vida(Ap 10,8-11) e sofre por causa do testemunho (Ap 1,9). Por isso tem autoridade para falar. Porém, apesar da sua autoridade, João não tem medo de confessar o que não sabe(Ap 5,4; 7,13-14). Na polêmica com os adversários, ele usa palavras duríssimas(Ap 2,9; 3,9) que certamente não usaria fora da polêmica. O editor do livro apresenta a palavra de João como sendo uma profecia e pede obediência(Ap 1,1-3; 22,18-19).

João escreve para os irmãos perseguidos das sete comunidades que estão na Ásia (Ap 1,4.11). O número sete simboliza todos. Escrevendo para as sete, João quer é animar a todas as comunidades, inclusive as de hoje. Condição para a pessoa ser atingida pela sua mensagem é sentir-se “irmão e companheiro na tribulação”.

3. A história do texto

O texto do Apocalipse é difícil não só por causa das imagens estranhas, mas também por causa das costuras e rupturas que nele existem. Não é um texto com uma unidade harmoniosa. Parece não ter um plano claro. Ele dá a impressão de ter sido escrito em várias etapas.

Um pedreiro experimentado é capaz de descobrir as etapas da construção de uma casa. Ele examina o prédio e diz: “A varanda da frente foi feita depois. Veja só os sinais na janela e na porta. A cozinha foi alargada. Olhe o piso e aquela viga lá no teto. Para o quarto de dormir dos meninos, ele puxou o telhado e aproveitou aquele ângulo morto. No começo só havia mesmo dois quartinhos, uma cozinha apertada e um banheiro”. O Apocalipse é como uma casa popular. Cresceu aos poucos, de acordo com as necessidades da família. Alguns exegetas examinaram os sinais nas paredes, no piso e no teto do Apocalipse. Analisaram as rupturas e costuras que existem no texto, e concluíram o seguinte:

1. A parte mais antiga são os capítulos 4 a 11. Foi escrita, provavelmente, durante a perseguição de Nero (64) ou, conforme outros, na época da destruição de Jerusalém (70). A caminhada das comunidades é vista como um Novo Êxodo. A Boa Nova é apresentada como um anúncio de libertação para o povo oprimido.

2. No fim do governo de Domiciano (81-96), a perseguição voltou. Os problemas cresceram. Era necessária uma reflexão mais aprofundada sobre a perseguição e sobre a política do império romano. Para responder a esta nova problemática dos anos 90 foram escritos os capítulos 12 a 22, concebidos como continuação e alargamento da sétima praga do fim da primeira parte (Ap 11,14-19). A história da humanidade é vista como revelação progressiva do julgamento de Deus. A Boa Nova é apresentada como condenação progressiva dos opressores do povo.

3. Em seguida, foram acrescentados os capítulos 1-3, que dão ao livro o aspecto de uma carta carinhosa com endereço certo. São como que a varanda acolhedora da frente, onde João recebe o povo perseguido. A carta começa com um preâmbulo (Ap 1,4-20), que serve de introdução a todo o livro do Apocalipse. A Boa Nova é apresentada como exigência de fidelidade e de compromisso.

No fim, um editor juntou tudo, fez o portão de entrada (Ap 1,1-3), ajeitou o quintal dos fundos, que é a conclusão (Ap 22,6-21), e a casa ficou pronta! Esta é apenas uma entre as muitas teorias que existem em torno do Apocalipse. A melhor teoria será aquela que melhor explique as dificuldades literárias que o texto apresenta, e melhor revele a mensagem do Apocalipse para os pobres e perseguidos de hoje. Conhecer a história da construção da casa é útil e importante para a compreensão do Apoca­lipse. Muito mais importante, porém, é o povo poder morar na casa e sentir-se protegido pelo poder de Deus. Mora gente nela até hoje!

12ª Chave

DIVISÃO DO TEXTO DO APOCALIPSE

A divisão do texto

1,1-3: PORTÃO DE ENTRADA Título e resumo do livro

1. Ap 1,4 até 3,22: AS CARTAS PARA AS SETE COMUNIDADES

1,4-20: A entrada para o livro

* 1,4-8 Saudação inicial para as sete comunidades

* 1,9-20 Origem do livro: a Visão Inaugural de Jesus

2,1-3,22: As sete Cartas para as sete Comunidades, isto é, para todas

* 2,1-7 para Éfeso

* 2,8-11 para Esmirna

* 2,12-17 para Pérgamo

* 2,18-29 para Tiatira

* 3,1-6 para Sardes

* 3,7-13 para Filadelfia

* 3,14-22 para Laodicéia

2. Ap 4,1 até 11,19: DEUS LIBERTA O SEU POVO

4,1-11: Visão do Trono de Deus

5,1-14: Visão do Cordeiro com chaga de morte

6,1-7,17: Abertura dos primeiros seis selos do livro de sete selos

* 6,1-8: o passado: abertura dos primeiros quatro selos

* 6,9-11: o presente: a abertura do quinto selo

* 6,12-7,17: o futuro: abertura do sexto selo

* 6,12-17: derrota dos opressores do povo

* 7,1-17: missão do povo perseguido

8,1-10,7: Abertura do sétimo selo: visão de seis das sete pragas

10,8-11,13: Intervalo que prepara o segundo roteiro (costura)

* 10,8-11: o livrinho doce e amargo

* 11,1-13: as duas testemunhas, Moisés e Elias

11,14-19: Sétima praga que marca a chegada definitiva do Julgamento de Deus

3. Ap 12,1 até 22,21: DEUS JULGA OS OPRESSORES DO POVO

12,1-17: O Passado: a luta entre a Mulher e o Dragão

13,1-14,5: O Presente: os dois campos em luta: Besta-fera e Cordeiro

* 13,1-18: a besta fera: o Império Romano

* 14,1-5: Cordeiro e exército: o povo das Comunidades

14,6-20,15: O Futuro: julgamento e condenação dos opressores do povo

* 14,6-13: três anjos anunciam o que vai acontecer

* 14,14 a 20,15: realiza-se o anúncio feito dos três anjos

*14,14-20: do 1º anjo: chegada do julgamento

*15,1-19,10: do 2º anjo: queda de Babilônia

*19,11-20,15: do 3º anjo: derrota final do mal

21,1-22,5: A festa final da caminhada do povo de Deus

Ap 22,6-21 Conclusão com recomendações finais.

13ª Chave

APOCALIPSE E LITURGIA

O uso do Apocalipse na Liturgia, o uso da Liturgia no Apocalipse. As duas afirmações são verdadeiras. O autor do Apocalipse se inspirou nas liturgias das comunidades e, ao mesmo tempo, o seu livro era usado para animar as celebrações das comunidades. Canta-se muito no Apocalipse, do começo ao fim. Até parece um livro de canto, um manual de liturgia, a descrição de uma grande celebração comunitária. Invocações, súplicas, lamentos, aclamações, gritos de vitória, saudações, preces, louvores, felicitações, procissões, ações de graças, elas ocupam grande parte das páginas do Apocalipse. Eis algumas:

* a liturgia cósmica diante do Trono de Deus, envolvendo toda a criação (Ap 4,4-11),

* a celebração da vitória do Cordeiro, envolvendo os anjos e a humanidade toda (Ap 5,8-14),

* o lamento dos perseguidos que sai debaixo do altar (Ap 6,9-11),

* a procissão imensa da humanidade em direção às fontes da água viva (Ap 7,9-17),

* a solene abertura do sétimo selo com muito incenso e oração (Ap 8,2-5),

* a liturgia que acompanha a sétima trombeta anunciando a chegada do Reino (Ap 11,15-18),

* a celebração de louvor e ação de graças por ocasião da vitória do menino (Ap 12,10-12),

* o cântico de vitória dos 144.000 assinalados ao redor do Cordeiro no Monte Sião (Ap 14,2-3),

* a tríplice Boa Nova trazida por três anjos que anunciam a queda de Roma (Ap 14,6-13)

* o cântico de Moisés sobre um mar de vidro, anunciando as últimas pragas (Ap 15,2-8),

* a aclamação que canta a justiça de Deus por ocasião da terceira praga (Ap 16,5-7),

* o jogral, que lamenta, canta e celebra, por antecipação, a queda do império Romano (Ap 18,1 até 19,8)

* a descrição litúrgica da chegada do novo céu e da nova terra (Ap 21,3-7).

Quem canta, seus males espanta. O jeito de orar revela o jeito de crer. A liturgia é a expressão da fé, da esperança e do amor da comunidade. Nela se revelam e se transmitem a imagem e a expe­riência que o povo tem de Deus, de Jesus e de si mesmo. Olhando pela janela destas celebrações, descobrimos dimensões da vida daquele povo que têm grande atualidade para nós.

14ª Chave

APOCALIPSE E A VINDA DE JESUS NO FIM DOS TEMPOS

A palavra Apocalipse significa re-velação. O Apocalipse re-vela (desvela) a vinda de Jesus e a descreve de várias maneiras: como já presente nas comunidades (Ap 1,9-20); como apelo à conversão (Ap 2 e 3); como libertador do povo perseguido (Ap 4-11); como Juiz que vem destruir as forças do mal que oprimem as comunidades (Ap 12-22). A vinda deve acontecer em breve (Ap 1,1). Ou melhor, já está acontecendo e, em breve, será revelada. No fim do livro, as comunidades pedem com insistência, para que Jesus não demore, e gritam: Vem! (Ap 22,17). O próprio Jesus responde: Sim, venho logo! (Ap 22,20)

São várias maneiras de se entender a vinda de Jesus, mas todas elas são como galhos variados que nascem do mesmo tronco. Este tronco tem quatro aspectos importantes misturados entre si:

1) Centro e raiz de tudo: O centro e a raiz de tudo é o nome de Deus É-Era-Vem (Ap 1,4.8; 4,8). Ele vem e virá por fidelidade ao próprio Nome (cf. Sl 91,14-15; 52,9). Em tudo que acontece Deus está vindo até nós. Ao longo dos séculos, a sua vinda se intensifica e só terminará no fim da história. Aí ele se chamará Era-É (Ap 11,17; 16,5), e já não vem mais, pois já veio e a sua presença será total, tudo em todos (1Cor 15,28).

2) Experiência da ressurreição: As comunidades viviam a experiência forte da presença do Ressuscitado no meio delas, “no meio dos candelabros” (Ap 1,13.20). Ao mesmo tempo, viviam a expectativa intensa da sua manifestação plena no fim dos tempos e queriam saber como e quando seria esta vinda: “Senhor, é agora que vai restaurar o Reino de Israel?” (At 1,6) Jesus responde que, em vez de perguntar pela data da vinda futura, devem testemunhar a Boa Nova da vinda de Deus hoje no meio de nós (At 1,7-8). Irrigando esta semente da presença da vinda hoje, apressamos o amadurecimento da hora da vinda futura (2Pd 3,11-13; 4,7-11).

3) Interpretação dos fatos: A maneira dos primeiros cristãos falarem da vinda de Deus e de Jesus era uma forma de eles lerem e interpretarem os fatos da história e da vida. Era para dizer que não existe neutralidade. Todos nós, de uma ou de outra maneira, estamos contribuindo para a chegada do fim, ou a favor ou contra. Estamos todos jogando no campo. Não há arquibancada para assistir à história do lado de fora. Falar da vinda era uma forma de provocar compromisso e engajamento nas pessoas (2Ts 3,10-11).

4) Limitações inerentes a toda percepção: Finalmente, deve-se levar em conta o aspecto particular dos primeiros cristãos que, inicialmente, esperavam a chegada do Dia de Javé e a vinda de Jesus para logo. Foi a experiência concreta da presença libertadora de Jesus Ressuscitado, que os ajudou a perceber melhor o alcance e o significado mais profundo da vinda de Jesus. Mas isto foi um processo longo que levou muitos anos, toda a segunda metade do primeiro século (2Pd 3,8-10).

O verdadeiro ecumenismo

A comunidade de Filadélfia era perseguida pelos judeus fariseus, mas, conforme a afirmação da carta, estes acabarão por converter-se (Ap 3,9). Reconhecerão que Deus ama não somente a eles, os judeus fariseus, mas também aos irmãos cristãos. Aqui está o fundamento do verdadeiro ecumenismo: não brigar para um ter razão contra o outro, nem querer converter o outro para ele aderir ao grupo da gente, mas sim, sem nenhuma segunda intenção, viver de tal modo o amor de Deus, a ponto de tornar-se para o outro uma Boa Notícia do amor de Deus. Viver de tal modo que o outro terá que reconhecer: Deus te ama. Quando o outro diz a mim: “Reconheço que Deus te ama!”, ele fala a partir do Deus que ele adora. Se ele reconhece que o Deus dele ama também a mim, deverá reconhecer que somos irmãos. Este é o significado profundo da afirmação da carta: Vou entregar-te alguns da sinagoga de Satanás que se afirmam judeus, mas não são, pois mentem. Farei com que venham prostrar-se a teus pés e reconheçam que eu te amo!” (Ap 3,9) Não é proselitismo. Não é superioridade. É vivência gratuita do amor! A mesma intuição, Jesus a transmite no fim da oração-testamento, conservada no evangelho de João (Jo 17,20-26). Esta atitude ecumênica leva a sério a experiência de Deus dos que pensam diferente de nós.

15ª Chave

RESUMO DA MENSAGEM DO APOCALIPSE DE JOÃO

1. Tirar o véu dos olhos, da Bíblia e da história

O povo está impaciente e diz: “Até quando, Senhor?” (Ap 6,10). Se Deus é o dono do mundo, como Ele permite esta perseguição tão demorada? Desmascarando a falsa propaganda do império (Ap 12,16; 13,1-18; 17,1-18), o Apocalipse tira o véu dos olhos e aponta os sinais da vitória de Jesus. Usando textos do Antigo Testamento para descrever a situação (Ap 4,2.8; 5,10; etc), tira o véu da Bíblia e mostra que o mesmo Deus de ontem conti­nua conosco hoje. Mostrando “as coisas que devem acontecer muito em breve” (Ap 1,1), tira o véu da história e situa a perseguição dentro do conjunto do plano da Salvação (cf. Subsídio 10)

2. Deus Pai, Juiz Supremo, Senhor do Tempo e do Espaço, Defensor da vida

Perseguidos pelo Império, os cristãos estão morrendo. A mensagem central do Apocalipse é a fé na ressurreição (Ap 1,17-18). O fundamento desta fé é a certeza de que Deus é o Criador do céu e da terra, Senhor da vida e da morte (Ap 11,17-18). A ele nada é impossível. Esta fé vitoriosa transparece na visão majestosa do Trono do Juíz, onde Deus toma assento como Senhor da história e Criador do Universo (Ap 4,2-8). É graças ao poder deste Deus que Jesus venceu (Ap 5,6-10) e que os fiéis têm coragem de crer em Jesus (Ap 1,5-6). Por isso, desde já, eles participam na vitória e podem reinar junto com ele (Ap 20,4-6).

3. Jesus Cristo, Vencedor da morte, Defensor do povo, Senhor da História

Jesus é o Go´êl, o parente mais próximo, o irmão mais velho, aquele que, pela entrega de si, resgata seus irmãos perseguidos (Ap 5,9). Ele é o Defensor do povo. Pela sua morte e ressurreição enfrentou e venceu o Satanás, o Acusador do povo (Ap 12,10). Deus, o Juiz, ratificou a vitória de Jesus e o Satanás foi jogado fora (Ap 12,7-11). Jesus tornou-se o Senhor da história (Ap 5,7). Um resumo desta mensagem central está na visão inaugural (Ap 1,9-20). O seu lembrete repetido está nos títulos dados a Jesus e nas frequentes aclamações de vitória (Ap 2,1.8.12.18; 3,1.7.14; 5,5.9-10.12; 7,10. 17; 11,15; 12, 5.10; etc.). São como postes que conduzem o fio da mensagem ao longo das páginas do Apocalipse até à visão final da Jerusalém celeste (Ap 21-22). Co­municam às comunidades perseguidas a certeza da presença de que Jesus ressuscitado está vivo no meio delas.

4. O Espírito e a Esposa dizem: “Vem!”

Os sete espíritos são de Deus (Ap 4,5) e também do Cordeiro (Ap 3,1). Eles estão diante do Trono (Ap 1,4). Como fiéis mensageiros, são enviados por toda a terra para executar o plano de Deus (Ap 5,6). O Espírito se comunica com as comunidades e lhes faz saber qual a vontade de Deus: “Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às comunidades!” (Ap 2,7.11.17.29.; 3,6.13.22). Ele fala pelos profetas (Ap 19,10; 22,6), arrebata o vidente para comunicar as visões (Ap 1,10; 4,2; 17,3; 21,10) e suscita no ser humano o desejo de Deus e da união com Ele (Ap 22,17). O número sete indica a plenitude da presença de Deus no meio das comunidades.

5. Perseguição e martírio

Perseguição e sofrimento, insegurança, medo e perigo de morte, falta de horizonte, cansaço, eram o pão de cada dia do povo das comunidades (Ap 2,10; 6,9-11; 7,13-14; 12,13.17; 13,7; 16, 6; 17,6; 18,24; 20,4). Como sobreviver nesta situação e testemunhar a Boa Nova de Deus? O Apoca­lipse é mensagem de esperança para o povo perseguido (Ap 1,9-18). Através de imagens e símbolos, faz outra leitura dos fatos. Aquilo que aparentemente é derrota, fraqueza e morte, na realidade, é expressão da vitória de Jesus, é pedra na construção do Reino, etapa na realização do plano de Deus (Ap 5,6-10). Assim, a perseguição perde a sua virulência e invencibilidade e assume a dimensão de teste­munho, de martírio.

6. Símbolos do passado

O uso do Antigo Testamento caracteriza o Apocalipse. Um uso marcado pela familiaridade de quem se sente em casa no Antigo Testamento, pela liberdade de quem se sente herdeiro da tradição e pela fidelidade de quem quer ser fiel ao compromisso da Aliança. Sobre o sentido e o alcance dos símbolos, veja o Subsídio 6. Sobre o uso do Antigo Testamento, veja o Subsídio 10)

7. O Específico: a fé na ressurreição

O que marca o Apocalipse e o diferencia dos outros apocalipses é o alcance e a centralidade da fé na ressurreição. A ideologia persa admitia dois princípios absolutos que governam o mundo ou interferem na história, o bem e o mal. Os apocalipses judeus e cristãos não admitem este dualismo. Para eles, o que existe é o projeto de Deus e o desvio dos que se colocam contra o projeto. O poder do mal é real e é respon­sável pelo que faz, mas não é dono da história nem tem autonomia total. É um poder dependente e limitado. No fim todo o mal será totalmente eliminado. A vitória final será de Deus, será do bem.

APÊNDICE

O CONTEXTO MAIS AMPLO DA CONJUNTURA DO IMPERIO ROMANO

Depois da morte e ressurreição de Jesus, o evangelho foi se espalhando. Em pouco tempo, a Boa Nova atravessou as fronteiras da Palestina e entrou pelo império romano a dentro: Ásia Menor, Grécia, Itália, Roma. Não foi uma caminhada fácil. Houve muitas dificuldades e perseguições, mas, apesar de tudo, o sol brilhava. O vento era favorável. Aquelas primeiras comunidades tinham uma espiritualidade muito viva, forte e resistente. Eram comunidades pequenas, muito pequenas, perdidas na imensidão do império romano que abarcava o mundo, havia mais de 200 anos.

Aos poucos, porém, o céu se cobria de nuvens. Uma tempestade se armava. Um conflito aberto com o império não podia demorar. A nova maneira de viver e conviver em comunidade, iniciada pelos cristãos, querendo ou não, ameaçava o sistema do império (Cf. At 17,6-7). Uma espiritualidade centrada na partilha de bens ameaça a quem só quer acumular! A vivência da fraternidade mina por baixo o sistema de quem só pensa em si. De fato, uns trinta anos depois da morte de Jesus, o imperador Nero decretou a primeira grande perse­guição. Foi apenas o início dos males! Em torno do ano 90, o imperador Domiciano decreta uma nova perseguição. Desta vez mais violenta e mais organizada. Domiciano torturava os cristãos para que abandonassem a fé. Como explicar essa mudança?

Quando as comunidades cristãs iniciam sua caminhada, o império romano ainda não tinha atingido seu apogeu. O império, que estava sendo construído com muita violência, era um aglomerado imenso de reinos, províncias, etnias, povos, cidades, tribos, todos congregados na submissão ao imperador. Em caso de rebeldia não havia perdão. O exército, formado pelas bem treinadas legiões, intervinha e matava sem piedade. O império era uma grande panela de pressão, cuja temperatura começou a subir na segunda metade do primeiro século com risco de explosão. Tudo isto influía na maneira de os cristãos viverem e anunciarem a Boa Nova de Jesus.

O Apocalipse de João surgiu neste período entre os anos 70 e 100. Enumeramos aqui sete fatores que mais de perto interferiram na vida das comunidades cristãs e que estimularam o surgimento de uma nova espiritualidade, capaz de sustentar a fé, a esperança e o amor do povo durante a tempestade e a crise da mudança.

1. Variedade de grupos e tendências nas comunidades

De um eucalipto cortado nascem inúmeros galhos e ramos. Do tronco do Crucificado ressuscitaram inúmeros brotos e flores. Desde a sua origem, o cristianismo nasce diversificado. A origem desta variedade está na própria natureza da encarnação e na liberdade do Espírito que atua nas comunidades. A variedade revela a beleza do rosto de Deus. Os fatores que contribuíram para fazer aparecer as diferenças eram muitos: a variedade das culturas em que a Boa Nova se encarnava; a diversidade dos costumes dos povos; as distâncias geográficas; a variedade da história de cada comunidade; os vários centros de irradiação: Jerusalém na Judéia, Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Roma na Itália, Alexandria no Norte da África, Corinto na Grécia; o jeito diferente dos missionários e das missionárias: Tiago, Pedro, Paulo, Lídia, Apolo, Maria Madalena, o casal Priscila e Aquila, e tantos outros; a variedade dos problemas que pediam respostas diferentes; as diferenças de classe; as diferentes tomadas de posição frente à política do império romano; a enorme variedade de doutrinas e religiões que invadiam o império.

Além disso, as várias tendências existentes entre os judeus reapareceram nas comunidades cristãs: piedosos (hassidim ou hassideus), essênios, zelotes, fariseus. Por exemplo, alguns ex-fariseus da comunidade de Jerusalém, ligados a Tiago, irmão de Jesus, se mantinham na observância da Lei, sem se misturar com os pagãos (At 15,1-2; Gl 2,7-8; 1,6-10; 9,12). Outros, como Apolo de Alexandria e os doze discípulos que apareceram na comunidade de Éfeso, combinavam o batismo de João Batista com a mensagem de Jesus (At 18,24-26; 19,1-7). Outros como Paulo deixavam para trás a observância rigorista da Lei e com um ardor missionário muito grande tentavam atrair o maior número possível de pagãos.

Mas nem sempre a variedade nascia da vontade de manifestar o Reino. Às vezes, ambições pessoais, medo de ser perseguido, visões diferentes, conflitos e tantas outras tensões e problemas levavam pessoas ou comunidades a acomodar a mensagem às vantagens do momento e a anunciar o Reino conforme tendências e medos não confessados. Isto começou a aparecer sobretudo depois dos anos setenta, quando a infiltração crescente da ideologia do império ia mostrando a fragilidade das comunidades dispersas e fazia sentir a necessidade de uma organização mais consistente para elas poderem sobreviver. Esta variedade, ao mesmo tempo rica e ambígua, transparece no Apocalipse de João, sobretudo nas cartas

(Ap 2-3).

2. A revolta dos Judeus e a destruição de Jerusalém

Ainda durante a vida de Jesus e sobretudo depois, as explosões populares contra a ocupação romana foram crescendo (Lc 13,1; 23,19; At 5,37; 21,38), novos partidos foram surgindo ou se organizavam: zelotes, sicários. A situação se radicalizava. A incapacidade e a brutalidade dos governadores romanos junto com a corrupção e a luta pelo poder da classe dirigente da Judéia, deixou o povo sem proteção e sem alternativa, e no ano 66 explodiu numa revolta generalizada. Roma perdeu o controle da situação. Estimulados pelas idéias do movimento apocalíptico, muitos viam no levante contra Roma a chegada do Dia de Javé!

Sacerdotes, saduceus e anciãos, forçados a entrar na revolta contra Roma, faziam o possível pa­ra manter o controle da situação. Mas pouco adiantou. As legiões romanas vieram e foram reconquistando a Galiléia e a Judéia, à espera do momento oportuno para o assalto final contra Jerusalém. Enquanto isso, dentro da cidade de Jerusalém, grupos rivais lutavam entre si pelo poder. Dois grupos de judeus, porém, não quiseram participar da rebelião: os judeus da linha farisaica e os judeus que tinham aderido à fé em Jesus. Tanto para os fariseus como para os cristãos, a revolta contra Roma não era expressão da chegada do Dia de Javé.

Pouco depois da Páscoa do ano 70, com a cidade de Jerusalém ainda cheia de peregrinos e de gente que nela buscava proteção contra a repressão romana, o general Tito, filho do Imperador Vespasiano, atacou com quatro legiões. O cerco durou vários meses, de maio até agosto. Foi um assédio cruel de muita fome e muitas mortes. Finalmente, Jerusalém foi tomada e totalmente destruída. O templo foi arrasado e, onde antes se ofereciam os sacrifícios a Javé, Tito mandou oferecer sacrifícios em honra de Jupiter ou Zeus, o deus supremo dos romanos. Esta era a “abominação da desolação” de que fala o discurso apocalíptico de Jesus (Mc 13,14). A destruição de Jerusalém foi um abalo para todos, fariseus e cristãos. A extrema crueldade e violência da repressão romana, sem nenhuma piedade, acentuou no povo o sentimento de total impotência diante do poder do império.

3. O povo assiste aos golpes militares que abalam o império

Neste mesmo tempo, nos anos 68 a 70, lá em Roma, no centro do poder, no final do governo de Nero, revoltas e golpes militares se sucediam em ritmo acelerado. Em menos de dois anos houve cinco golpes militares e cinco imperadores. A confusão era tanta que parecia o fim do império.

54-68 Nero, imperador: lutas internas pelo poder

64 Primeira grande perseguição das Comunidades cristãs pelo império romano.

66-70 Levante do povo judeu na Palestina contra a ocupação romana

68 Março: o general Vindex lidera uma rebelião na Gália (França)

Abril: o general Galba, imperador, lidera a revolta das legiões na Espanha

Junho: suicídio de Nero

69 Janeiro: o general Otto, imperador, lidera o golpe da guarda pretoriana em Roma

Janeiro: o general Vitélio, imperador, lidera rebelião das legiões na Germânia

Julho: o general Vespasiano lidera rebelião das legiões na Palestina e no Egito e é proclamado imperador

69-79 Vespasiano, imperador. Seu filho Tito assume no Oriente

70 Tito destrói Jerusalém, a Cidade Eterna.

72 Derrota total em Massada dos últimos judeus que resistiam ao império

4. A progressiva separação entre Judeus e Cristãos.

O levante dos judeus da Palestina contra Roma, em vez de ser a tão esperada chegada do Dia de Javé, foi a causa da destruição dos grupos que dele tinham participado. Só sobreviveram os dois grupos que não tinham participado: fariseus e cristãos. Terminado o confronto com Roma, ambos se consideravam os legítimos herdeiros da promessa e começaram a lutar entre si pela posse da grande herança que vinha desde Abraão. Assim, a partir do ano 70, cresce a separação entre judeus e cristãos, e o relacionamento entre os dois caminha lentamente para uma ruptura definitiva que foi acontecendo no decorrer do Século II. Esta ruptura entre judeus e cristãos talvez seja um dos acontecimentos mais trágicos de toda a história do Ocidente. Mistério incompreensível! (Rm 9-11).

O trauma que ficou da destruição de Jerusalém provocou em ambos, judeus e cristãos, uma revisão e uma reorganização generalizada. Os fariseus se reagruparam, primeiro em Jamnia na Judéia, depois na Galiléia, e começaram a re­organização do judaísmo em torno da Sinagoga. O rabino Iohanan ben-Zakai fundou a assembléia de Jamnia, onde foram estabelecidas as normas para definir quem é judeu e quem não é; quem pode ser rabino e quem não pode ser. Foi elaborada também a lista dos livros que deviam ser reconhecidos como sagrados, patrimônio da fé judaica. Nesta lista não figuravam os livros escritos ou traduzidos no ambiente da diáspora, nem os do ambiente dos apocalípticos que tinham resistido contra a elite de Jerusalém. Devido à rápida divulgação da Boa Nova de Jesus entre os próprios judeus, a reorganização do judaísmo teve um cunho de defesa contra os judeus cristãos que pretendiam ser os herdeiros das promessas de Deus a Abraão.

Neste mesmo período, também os cristãos se reorganizavam em torno da Igreja. E também entre eles a reorganização se fez, em parte, em oposição aos irmãos judeus que os acusavam de infidelidade à Lei de Deus e os excluíam da sinagoga. Os cristãos aceitaram como inspirados vários livros escritos ou traduzidos no ambiente da diáspora: os dois livros dos Macabeus, as novelas populares de Judite, Tobias, alguns fragmentos de Ester, os livros de Sabedoria, do Eclesiástico e de Baruc e alguns trechos acrescentados ao livro de Daniel: a história de Suzana (Dn 13) e a lenda de Bel e do Dragão (Dn 14). São os assim chamados livros deutero-canônicos. Mas a maior parte da literatura apocalíptica também não entrou no Cânon dos cristãos.

O conflito entre judeus e cristãos repercutiu no conflito entre os cristãos e o império, seja pela influência dos judeus junto às autoridades romanas, seja pela confusão que identificava cristãos e judeus como sendo da mesma religião. Este ambiente polêmico se reflete no Apocalipse (Ap 2,9; 3,9).

5. As religiões, o culto ao imperador e a ideologia imperial

Na segunda metade do primeiro século, houve um forte renascimento das nacionalidades e das religiões dos povos subjugados pelo império romano. Eram religiões ou doutrinas de dois tipos, muitas vezes misturadas entre si. Umas de linha mistérica. Mysterion é uma palavra grega que significa segredo, algo escondido que se revela. Para uma pessoa poder entrar em contato com a divindade, estas religiões ofereciam aos seus iniciados uma participação em ritos e cultos secretos. Outras eram de linha gnóstica. Daí vem o nome gnosticismo. Gnose é uma palavra grega que quer dizer conheci­mento. Para uma pessoa poder entrar em contato com a divindade, estas religiões ofereciam aos seus iniciados conhecimentos superiores. Havia vários graus de iniciação e de aprofundamento. Era uma tendência religiosa muito divulgada, que criava nos seus membros uma certa consciência de elite. Os grupos gnósticos divulgavam a teoria dualista, onde o espírito, que tem o conheci­mento (gnose), é superior à matéria, ao corpo, que abate e deprime o espírito. O ideal é o espírito se libertar do peso do corpo. Por isso os mais exaltados negavam a encarnação, não aceitavam que Jesus tivesse vindo na carne (2Jo 7) e desprezavam o matrimônio (1Tm 4,3) e o trabalho manual (2Ts 3,11).

O crescimento destas religiões com seus cultos e mistérios revela o vazio que existia. O seu avanço representava uma ameaça de desintegração para o império. Para fazer frente a este perigo a propaganda imperial soube usar a própria religiosidade popular como fator de unidade do imenso império. Ela ensinava que a Paz dos Deuses tinha irrompido no mundo através da Pax Romana, cu­jo promotor divino era o próprio Imperador, chamado Deus et Dominus, Deus e Senhor. Era a religião a serviço dos interesses da ideologia dominante (Ap 13,4.14), a romanização da religião popular!

A propaganda fazia do Imperador e da cidade de Roma seres divinos. A terra inteira deveria adorar ao imperador como se fosse um deus (Ap 13,4.12.14). Ele chegava a ser apresentado como um ressuscitado (Ap 13,3.12.14). A propaganda imperial atingia o povo na vida diária através de muitos canais. Através do comércio, favorecido por uma administração eficiente com cobrança de tributos, taxas e impostos. Através da cultura grega com seu estilo de vida e com a organização característica das suas cidades. Através de ginásios de esporte e jogos olímpicos cada quatro anos. Através da difusão das novas idéias, propagadas pelos filósofos ambulantes gnósticos e outros. Através dos costumes bem populares do Pão e Circo e da distribuição da carne oferecida aos ídolos. Através da estratégia militar e da truculência na repressão aos revoltosos. Através da religião com seu pan-theon, templos, estátuas, práticas de magia, procissões, festas, sua mitologia e o culto aos heróis. Na Ásia Menor chegou-se a eleger um alto funcionário para promover as festas anuais e os jogos pelo aniversário do imperador. Religião e política era uma coisa só. Os capítulos 13, 17 e 18 do Apocalipse de João confirmam e completam este quadro. Eles mostram como a ideologia entrava na vida do povo através das grandes obras de impacto causando admiração (Ap 13,13-14); através do consumo de artigos de luxo para a classe dominante (Ap 18,11-13); através do controle econômico (Ap 13,16-17); através do culto obrigatório ao imperador (Ap 13,15); através da aliança do poder central com as lideranças locais, os reis da terra (Ap 17,12-13); através das armas e da perseguição (Ap 17,6).

Do ponto de vista econômico, os templos funcionavam como bancos e centros financeiros. Além disso, o culto aos ídolos nesses templos empregava muita gente: agricultores para tomar conta das fazendas dos templos e criar os animais para os sacrifícios; comerciantes para a compra e venda destes animais; curtumes da pele dos animais sacrificados e, conseqüentemente, fabricação de pergaminho para livros; fabricação das vestes sagradas, do incenso e outros utensílios necessários para as celebrações e procissões; provedores de lenha; carregadores de água; fabricação de estátuas para vender aos peregrinos; acomodação para os milhares de peregrinos nas inúmeras festas ao longo do ano; preparação das festas; organização dos jogos olímpicos cada quatro anos em honra dos deuses; associações de trabalhadores, cada qual com sua divindade protetora e com suas refeições sagradas. Quem se aventurava a ser contra o culto dos ídolos, corria o perigo de perder o emprego e de ser hostilizado por parentes e amigos, cuja segurança econômica dependia deste sistema do culto aos ídolos (At 19,23-40).

Era quase impossível alguém viver sem participar deste culto, como hoje é muito difícil alguém viver ou sobreviver sem nunca entrar num shoppingcenter, os novos templos do consumo. Por exemplo, na Ásia Menor, havia uma certa concorrência entre as cidades para conseguir o privilégio de ser eleita cidade-campeã do culto ao imperador. A cidade eleita que melhor incentivasse a religião imperial recebia o título de “Cidade Fiel”, era chamada neokoros, e recebia benefícios e vantagens, como foi o caso da cidade de Esmirna. A comunidade cristã de Esmirna procurava ser fiel de outra maneira (Ap 2,10). Para poder ser eleita como Cidade Fiel a cidade tinha que dar prova de que todos os seus habitantes eram a favor do culto ao imperador. Caso na cidade houvesse um grupo contrário, este era perseguido e hostilizado por ser contra o “progresso” da cidade. Aqui está um dos motivos principais da perseguição aos cristãos de que fala o Apocalipse.

6. O conflito interno nas comunidades cristãs

No fim do primeiro século, como uma espécie de Nova Era, a religião da Pax Romana junto com as outras tendências religiosas invadiam também as comunidades cristãs produzindo nelas várias tendências e formulações, tanto na doutrina como na liturgia e na organização. Havia os Nicolaítas (Ap 2,6.15), o grupo de Balaão (Ap 2,14), o de Jezabel (Ap 2,20), os “anti-cristos” que não aceitavam a encarnação (1Jo 2,22; 4,2-3; 2Jo 7), os que se apresentavam como judeus e não eram (Ap 2,9; 3,9), os que se apresentavam como apóstolos e não eram (Ap 2,2). Nem tudo estava claro para todos. As fronteiras não eram nítidas. A situação política estava muito confusa.

O problema já vinha de longe. No tempo do apóstolo Paulo, naquelas mesmas comunidades da Grécia e da Ásia, alguns achavam que agora, sendo seguidores e seguidoras de Jesus, já não poderiam participar de nada que estivesse relacionado com o culto aos ídolos, como, por exemplo, comer a carne que vinha dos sacrifícios nos templos ou marcar presença nas celebrações públicas. Outros achavam o contrário. Para estes tais gestos eram neutros. Seria como participar hoje da cerimônia do hasteamento da bandeira nas escolas. Tudo isto criava muitos problemas e tensões, tanto nas comunidades como nas famílias. Nas suas cartas Paulo ajudava as comunidades a olhar o problema do ponto de vista da liberdade da consciência dos filhos de Deus. Assim, dava às pessoas a liberdade para discernir se comiam ou não da carne oferecida aos ídolos (1Cor 8,1-13; 10,23-33; Rm 14,1-8).

Mas nos anos seguintes, de 60 a 90, muita coisa foi mudando. Cresceu o culto ao imperador. Domiciano queria templos dedicados à deusa Roma em todas as cidades e celebração pública das grandes datas do império. O gnosticismo tinha aumentado a sua influência e divulgava a idéia de que a carne oferecida aos ídolos, sendo uma coisa material, não afetava o espírito e, portanto, podia ser comida sem afetar a fé em Jesus. Além disso, depois dos acontecimentos dos anos sessenta, tais como, a perseguição de Nero (64), a morte dos apóstolos Pedro e Paulo (67), e a destruição de Jerusalém (70), as idéias apocalípticas se espalhavam com rapidez entre judeus e cristãos nas comunidades da Grécia e da Ásia e questionavam a facilidade com que as comunidades fundadas por Paulo favoreciam uma certa abertura com relação ao império. O próprio Paulo não tinha sido morto por essas autoridades constituídas, às quais ele mandava obedecer (Rm 13,1)? De fato, a situação não estava clara.

Não deve ter sido fácil discernir o caminho certo. Nem todos pensavam do mesmo jeito. Algumas comunidades para expressar sua fé em Jesus Cristo assumiam elementos, tanto dos gnósticos e mistéricos como da religião do império, por exemplo, o hino ao Cristo cósmico (Ef 3,1-14; Cl 1,15-20). Outras assumiam uma atitude de defesa contra a invasão das doutrinas estranhas, como transparece no Apocalipse, na carta aos Colossenses (Cl 2,8) e nas cartas Pastorais (1Tm 1,3-7; 4,1-2; 2Tm 2,16-18).

As ameaças do império, as pressões da propaganda imperial, o medo de perseguição e de hostilidades (Hb 10,32-34), a falta de uma análise crítica da realidade e a ingenuidade política de muitos cristãos, tudo isso levava alguns a voltar atrás (Hb 6,6) ou a encontrar nas cartas de Paulo e nas idéias gnósticas uma justificativa para não se opôr publicamente ao império e encontrar uma forma de convivência. Se a matéria e o corpo não têm valor, assim diziam os gnósticos, então não tem importância nenhuma você queimar um pouco de incenso em honra do imperador, dobrar os joelhos diante de uma imagem da deusa Roma ou participar de uma orgia sexual numa celebração de uma dessas divindades romanas. Isso é coisa do corpo, da matéria! Não atinge o espírito fiel da pessoa, nem significa renegar a fé em Jesus. Coisas materiais e corporais desse tipo não afetam em nada o espírito que se mantém puro e sem mancha. Assim alguns ensinavam.

O conflito básico com o império não era tanto a perseguição direta e sangrenta, mas sim a quase imperceptível infiltração crescente da ideologia do império na vida diária e no modo de pensar e de viver das comunidades. Isto se concretizava sobretudo na compra da carne oferecida aos ídolos, na participação em algum ato de culto ao imperador ou em alguma procissão em honra das divindades romanas, na aceitação das idéias gnósticas, etc. Lideranças como Balaão (Ap 2,14) e Jezabel (Ap 2,10) favoreciam esta confusão ingênua. A mesma atitude de simpatia com as autoridades do império transparece em alguns outros textos da mesma época. A carta a Tito continua pedindo submissão aos magistrados e às autoridades (Tt 3,1) e outros pedem que se façam pedidos, orações, súplicas e ação de graças por todos os homens, pelos reis e todos que detêm autoridade (1Tm 2,1-2).

Diante deste avanço ameaçador da ideologia imperial e diante da confusão de idéias existente entre os próprios cristãos, a espiritualidade do Apocalipse de João reage com força. Ela não concorda com este tipo de raciocínio, e chama tudo isto de prostituição (Ap 2,14.21).

7. O Apocalipse e a perseguição por parte do império

O objetivo real da Pax Romana era legitimar e expandir o domínio romano, favorecer o comércio interna­cional, garantir a cobrança tranqüila dos impostos e tributos e, assim, intensificar a concentração da riqueza e do poder em Roma. Resultado: escravização crescente nas periferias e excesso de luxo no centro em Roma (Ap 18,9-20). De um lado, sofrimento e revoltas. Do outro, insensibilidade, alienação e afrouxamento dos costumes (Rm 1,18-32). Paulo define bem a situação quando diz: Eles mantêm a verdade prisioneira da injustiça (Rm 1,18).

Enquanto os povos subjugados cumprissem suas obrigações para com o império, não eram molestados. Sua obrigação era pagar o tributo, os impostos e as taxas, não fazer guerra entre si, fornecer soldados para o exército romano, reconhecer a autoridade divina do imperador e cultuar as divindades romanas. O mesmo valia para as comunidades cristãs. Enquanto não prejudicassem os interesses do Estado, podiam viver e crescer. Na hora, porém, em que apresentassem qualquer ameaça para o poder do Estado, começavam a ser perseguidas.

Convém definir melhor o que se entende por perseguição. Na América Latina, de 1960 para cá, não houve perseguição explícita decretada contra os cristãos por parte dos governos dos vários países. Mas nestes mesmos 40 anos, de 1960 até 2000, houve centenas e centenas de mártires na América Latina, a qual, aparentemente, continua sendo um Continente pacato, onde a Igreja vive em paz, sem perseguição da parte dos governos. Assim, mesmo não tendo havido perseguição explícita no fim do primeiro século na época de Domiciano, muita gente foi morta. As alusões no livro do Apocalipse são demasiadas para serem negligenciadas ou desfeitas como sendo de menor importância: Ap 1,9; 2,3.10.13; 6,9-11; 7,13-14; 11,7-8; 12,11.13.17; 13,7.15; 16,6; 17,6; 18,24; 20,4.

Quando falamos em perseguição pelo império romano, não falamos só das grandes perseguições deflagradas pelo governo central de Roma. Estas até que não foram muitas, ao menos no primeiro século. Mas sim de todo tipo de conflito que os cristãos tiveram com o sistema do Império, mantido no mundo inteiro através da observância estrita das leis do império, através da propaganda e da manipulação da religião e através da força das armas. Isto é, conflitos com a polícia, com a justiça, com a opinião pública, com a propaganda, com a religião oficial, com as autoridades locais, com os grupos de interesse ou de pressão, com os vizinhos. A maneira de viver e de conviver dos cristãos, querendo ou não, incomodava aos que preferiam seguir a linha da ideologia dominante do império e, por isso mesmo, era causa de hostilidades e de perseguições de todo tipo. Os cristãos viviam na contramão da Pax Romana e do culto ao Imperador. A propaganda dizia: O imperador é Deus e Senhor. Os cristãos diziam: Jesus é o “Rei dos reis, Senhor dos senhores” (Ap 19,16). No livro dos Atos, mesmo não havendo um conflito aberto com o império, nele já aparece a semente da futura perseguição, a saber, a facilidade com que as instituições do império podiam ser utilizadas contra os que defendiam a justiça e a verdade (At 16,19-23; 17,5-9.13-14).

Como conseqüência desta pressão ideológica cada vez mais forte, havia também perseguição sangrenta. Juntando todos os indícios do Apocalipse a este respeito, obtém-se um quadro de muita gravidade, em que as pessoas corriam perigo de vida pelo simples fato de serem cristãs: em Pérgamo houve o martírio de Antipas (2,13); a comunidade de Éfeso era perseguida por causa do Nome de Jesus (Ap 2,3); na comunidade de Esmirna, alguns já foram presos (Ap 2,10); a de Filadélfia, apesar de fraca, não renegou o nome (Ap 3,8); o próprio João, no momento de escrever sua mensagem, estava preso (Ap 1,9); no quinto selo, que reflete a situação das comunidades, ouve-se o grito dos que foram mortos por causa do testemunho que deram da Palavra. Era perigoso e difícil sustentar a fé. O controle do império era total. A repressão era tanta, que ninguém podia escapar da sua vigilância (Ap 13,16). Quem não apoiava o regime, era excluído do mercado e não podia vender nem comprar nada (Ap 13,17; Hb 10,32-35). Quem não concordava com as idéias da ideologia era perseguido. Fala-se de comercialização de vidas humanas (Ap 18,13) e de perseguição até à morte (Ap 12,11.13.17; 13,7.15; 16,6; 17,6; 18,24; 20,4).

Esta era a conjuntura no fim do primeiro século. Assim, com a chegada do fim do primeiro século, parecia ter chegado também o fim da caminhada das comunidades. Todas as portas estavam fechadas. Todo o poder do mundo se voltava contra os cristãos. Muitos abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do imperio. Na comunidade se dizia: “Jesus é o SENHOR!” Mas lá fora, quem mandava mesmo como senhor todo-poderoso era o imperador de Roma! Ora, é nesta situação confusa de perseguição, em que tudo parecia perdido, que foi feita a redação final do Apocalipse de João.

http://gilvander.org.br/site/introducao-ao-apocalipse-de-sao-joao/

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J B Pereira e http://gilvander.org.br/site/introducao-ao-apocalipse-de-sao-joao/
Enviado por J B Pereira em 19/06/2018
Reeditado em 20/06/2018
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