ANTÍNOO E A DOR DA MORTE

Um dos poemas que mais gosto é “Antínoo”, de Fernando Pessoa, em especial, a impressionante nênia de Adriano, capaz de nos transportar à beira do amado corpo morto.

Sem surpresa, um dos meus livros prediletos, que releio sempre é “Memórias de Adriano", da insuperável Marguerite Yourcenar.

Da morte de Antínoo e do drama de Adriano, não sei qual dos dois autores constroem monumento maior à dor. Ambos, porém, representam o sofrimento que não se consegue conceber diante da perda do ser amado, principalmente quando este se entrega em sacrifício que acredita necessário à permanência do próprio amor.

“Tive meus presságios: como Marco Antônio antes da última batalha, ouvi, durante a noite, afastar-se a música da rendição dos deuses protetores que partem...” (p. 155)

“Era o primeiro dia do mês de Atir (...) aniversário da morte de Osíris, deus das agonias...” (p.169).

Assim, Marguerite começa a descrever o calvário do amante que iria perder tudo, não sem ter (a autora) deixado marcas aqui e ali, como fragrâncias suavíssimas do perfume que iria nos embriagar: o aroma da morte.

Dizem que o próprio Antínoo, na mais ingente prova de amor, em sacrifício, ofereceu-se aos deuses pela prosperidade de seu imperador. Outros afirmam que Antínoo matou-se por já se sentir velho (aos vinte anos), imaginando que, perdidos os seus encantos juvenis, não mais mereceria os olhos de paixão e desejo do imperador. Marguerite, no romance ímpar, descreve esse medo, a escolha da morte diante da perda maior do ser amado.

Depois de retirar das águas o corpo de Antínoo, toda a reflexão de Adriano é um círio que fere a própria dor. É a lágrima seca de quem, apesar de ter amado tanto, não foi capaz de impedir a morte. A morte por amor, como a de Antínoo. Morreu para não perder quem amava.

Adriano, imerso na lamentação afirma, através de Marguerite, que Antínoo “deveria sentir-se bem pouco amado para não compreender que o pior dos males seria perdê-lo”. (p. 174).

“Antínoo é morto” (p. 173).

“Jaz morto o jovem”, ecoa Fernando, no trágico poema.

E chora e lembra, o atormentado amante, sobre quem tudo desmorona:

“Oh olhos algo inquietantemente ousados!

Oh simples macho corpo feminino

qual o aparentar-se um Deus à humanidade!

Oh lábios cujo abrir vermelho titilava

os sítios da luxúria com tanta arte viva!”

“Por vezes, a imagem surgia por si mesma; sentia-me arrebatado por uma vaga de doçura (...) Falta-me tudo ao mesmo tempo. (p. 176).

Perdido de si e do menino de quem zombava amando-o tanto, a voz imperiosa, agora suplica, inocente, ainda e para sempre, deste sofrer:

“E chama-o pelo nome, exige-lhe que volte,

E põe-se a sorrir ao seu ilusório regresso

Que está no coração como faces na penumbra –

Meras sombras brilhantes das formas que tiveram.”

É inútil a exigência, remédio vão para dor nunca se cala:

“Gritei, clamei com o rosto enterrado numa almofada (...) O cadáver e eu partimos à deriva, levados em sentido contrário por duas correntes do tempo.” (p. 176).

E ainda que perpetue o jovem amante como um deus depois da morte, tratado, ao final, sem remédio, resta-lhe a adoração do mármore de formas inigualáveis, desafiando os deuses:

“Essa imagem do nosso amor há-de unir os tempos.

Assomará branca do passado para ser

Eterna como um triunfo romano;

O futuro porá angústia em todos os corações

Por não terem sido contemporâneos do nosso amor.”

Antínoo, endeusado, pesando sobre as pálpebras que beijara, sobre o peito onde se reclinara, deixa o imperador diante da noite, exausto do frio que agora toca, dolorosa representação do seu amor que vivia das chamas.

“Chovia ainda. Mas pé ante pé entrou a noite,

Cerrando as pálpebras pesadas de todos os sentidos.”

Notas:

As páginas citadas são da edição de 2003, de “Memórias de Adriano”, publicada pela editora da Folha de São Paulo.

As outras citações são do poema de Fernando Pessoa.