"Trouxe a Religião contribuições úteis à civilização?*

Bertrand Russell**

Minha opinião acerca da religião é a mesma que a de Lucrécio. Considero-a como uma doença nascida do medo e como uma fonte de indizível sofrimento para a raça humana. Não posso, porém, negar que ela trouxe certas contribuições para a civilização. Ajudou, nos primeiros tempos, a fixar o calendário, e levou os sacerdotes egípcios a registrar os eclipses com tal cuidado que, com o tempo, foram capazes de predizê-los. Estou pronto a reconhecer esses dois serviços, mas não tenho conhecimento de quaisquer outros.

A palavra "religião" é hoje usada num sentido muito livre. Certas pessoas, sob a influência de um protestantismo extremo, empregam essa palavra para denotar todas as convicções pessoais sérias relativas à moral ou à natureza do universo. Esse emprego da palavra é inteiramente anti-histórico. A religião é, antes de mais nada, um fenômeno social. É possível que as Igrejas devam sua origem a mestres dotados de fortes convicções individuais, mas tais mestres raramente tiveram muita influência sobre as Igrejas que fundaram, enquanto que as Igrejas tiveram enorme influência sobre as comunidades em que floresceram. Para tomarmos um caso de sumo interesse para os membros da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo, tais como aparecem nos Evangelhos, tiveram, extraordinariamente, pouco que ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o Cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo, mas a Igreja, e, se quisermos considerar o Cristianismo como uma força social, não é nos Evangelhos que devemos procurar nosso material; Cristo ensinou que deveríamos lutar, que não deveríamos ir à igreja e que não deveríamos punir o adultério. Nem os católicos, nem os protestantes, demonstraram qualquer desejo forte de seguir esses ensinamentos. Certos franciscanos, é verdade, tentaram ensinar a doutrina da pobreza franciscana, mas o Papa os condenou, e suas doutrinas foram declaradas heréticas. Ou, então, consideremos um texto como o de "Não julgueis para que não sejais julgados", e perguntemos a nós próprios que influência tal texto teve sobre a Inquisição e a Ku-Klux-Klan.

O que é verdade com respeito ao Cristianismo, o é também com respeito ao Budismo. Buda era amável e esclarecido: em seu leito de morte, riu de seus discípulos, que o consideravam imortal. Mas o sacerdócio budista -- tal como existe, por exemplo, no Tibet -- sempre foi obscurantista, tirânico e cruel no mais alto grau.

Nada há de acidental quanto a essa diferença entre uma Igreja e o seu fundador. Logo que se supõe que a palavra de certos homens contém a verdade absoluta, surge um corpo de especialistas para interpretar seus ensinamentos, e tais especialistas adquirem, infalivelmente, poder, já que possuem a chave da verdade. Como qualquer outra casta privilegiada, usam de seu poder em seu próprio benefício. São, porém, em certo sentido, piores do que qualquer outra casta privilegiada, pois que sua função consiste em expor uma verdade imutável, revelada uma vez por todas em sua suprema perfeição, de modo que se tornam, necessariamente, adversários de todo progresso intelectual e moral. A Igreja opôs-se a Galileu e a Darwin; em nossos dias, opõe-se a Freud. Na época de seu maior poder, foi ainda mais longe, em sua oposição à vida intelectual. O Papa Gregório, o Grande, escreveu a um certo bispo uma carta que começava assim: "Chegou ao nosso conhecimento uma informação a que não podemos nos referir sem corar: a de que ensinas a gramática a certos amigos". O bispo foi obrigado, pela autoridade pontifícia, a desistir desse pecaminoso trabalho, e a Latinidade não se refez até a Renascença. Não é apenas intelectualmente, mas moralmente, que a religião é perniciosa. Quero dizer, com isto, que ela ensina preceitos éticos que não conduzem à felicidade humana. Quando, há poucos anos, se realizou na Alemanha um plebiscito para se saber se as casas reais depostas deviam ainda ter o privilégio de gozar de suas propriedades privadas, as Igrejas, na Alemanha, declararam oficialmente que seria contrário aos ensinamentos do cristianismo privá-las disso. As Igrejas, como se sabe, opuseram-se, enquanto ousaram fazê-lo, à abolição da escravidão e, salvo algumas poucas exceções bastante anunciadas, opõem-se, no presente, a todos os movimentos que têm por objetivo a justiça econômica. O Papa condenou oficialmente o socialismo".

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*Publicado em 1930. Intregra a obra EDWARDS, P. (Org.). RUSSEL, B. PORQUE NÃO SOU CRISTÃO E OUTROS ENSAIOS SOBRE ASSUNTOS CORRELATOS. Trad. B. Silveira. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1972, p. 20-21.

**Filósofo inglês, nasceu em 1872 e morreu em 1970. Em 1950, Russell recebeu o Prémio Nobel da Literatura "em reconhecimento dos seus variados e significativos escritos, nos quais ele lutou por ideais humanitários e pela liberdade do pensamento" (Fonte: Wikipédia).