A Rua da Revolução e o ocaso dos sonhos (Revolutionary Road, Richard Yates, 1961)

“Foi Apenas Um Sonho” é o título dado no Brasil ao “Revolutionary Road” (RR) de Sam Mendes, filme homônimo ao romance original de Richard Yates (1961), que chegou no mês passado às livrarias brasileiras em primorosa tradução. E se o péssimo costume latinoamericano de reinterpretar o título de filmes estrangeiros no mais das vezes põe por terra sutilezas de toda sorte, desta feita até que o sentido “em português” não faz feio perante o título original.

Mas não, não vi o filme. Apesar de ser fã de primeira hora da já mitológica Kate Winslet (atriz talhada para grandes papéis, como esta April Wheeler), e de ter aplaudido de joelhos a escolha de DiCaprio para o papel do esposo Frank, ainda não tive a oportunidade de ver o filme. E acho que vou demorar a querer ver, ainda zonzo do embate intelectual a que Mr. Yates, ghostwriter de Bob Kennedy, nos presenteia em RR. Quem viu (o filme) diz que fica aquém de “American Beauty”, e a léguas – não anos-luz - do caleidoscópio de ideias apresentado no romance. Eu disse léguas. Com atores como Leo e Kate, vale uma olhada. Mas se puder leia o livro. Leia o livro primeiro. Assim como há filmes in natura que, se precedidos da leitura do livro que os inspirou, pareceriam menores do que realmente são, há livros tão magistrais que qualquer interferência na memória pode bastar para macular uma experiência em tudo sobrenatural. Então falemos do livro, por ora, o que já é assunto que basta.

E este acerta em cheio, de cara, com um título que só poderia ser mais cru e direto se portasse número da residência, telefone ou os dizeres “The Wheelers”. A tal Rua da Revolução define bem espaço e lugar, onde o desejo de significância faz o casal – culto e relativamente inteligente e letrado, ainda que ainda lhes falte estofo moral ou verdadeira fineza - residente na única casa sui generis de toda a região, lute para permanecer intelectualmente vivo e pessoalmente motivado perante a degradação social que os cerca, pintando um painel perfeitamente apropriado para uma crônica dos subúrbios das grandes cidade americanas nos dourados anos cinquenta.

O sucesso de Yates, escritor de recursos técnicos aparentemente ilimitados, deve-se em grande parte ao sucesso da obra, que difundiu-se lenta e consistentemente ao longo das últimas cinco décadas. Lido hoje, com o cérebro embebido por anos de exposição a clichês dos anos 50 - década eternamente a ser revista nos clássicos desenhos animados, na música e na moda - “Revolutionary Road” sintetiza tal época como talvez nenhuma outra obra de arte no período - e tanto quanto o rock'n'roll e a minissaia, as tiaras e os topetes e a gomalina (e o cheiro de estofamento de couro, perfume e saliva no banco de trás dos carrões rabos-de-peixe.,,) E o faz sem precisar apelar a qualquer lugar comum, quase sem fazer referẽncia à revolução nos costumes, sem elevar seus olhos acima de horizontes previsíveis à vidinha suburbana do casal de protagonistas, cuja juventude teima em (começar a) ficar para trás.

“Revolutionary Road” é prosa elaborada, endereçada a adultos experientes. Incisiva e certeira, por vezes sua voz é cruel: revela suas personagens com rapidez e violência, como quem descasca, arranca ou rebenta. Ao romance nada falta, visto que as tramas, emaranhadas, todas se fecham; nada sobra, visto que é justamente na secura e na economia que reside sua força.

À medida que avança para o final, Yates vai progressivamente asfixiando o leitor, fazendo-o partilhar da tragédia anunciada dos Wheeler e sofrer impotente ao vê-los transformar sonhos em mágoa e desesperança. Torce-se por eles porque é assim que aprendemos a reagir às inteligências do roteiro, é claro, e porque o papo é bom, obviamente, mas em primeiro lugar porque são humanos, muitíssimo humanos, e espelham a cada minuto outra face de nós.

Herdeiro de características fitzgeraldianas, Yates consegue (ele próprio ainda na casa dos trinta anos quando escreveu este livro) unir ritmo e verve, sensibilidade e musicalidade aliados a uma perfeita construção de roteiro e personagens – e brilha com o mesmo desvelo comedido, perfeccionista e espontâneo dos contos tardios de Scott. Mestre no uso da técnica de contrapor pontos de vista, o narrador brinca com a dupla premissa de “estar” ou ”não estar lá”, aproveitando-se da possibilidade de observar cada vaso e seu conteúdo, aproximando-se do ideal utópico do criador-deus, onipresente e onisciente (porém discreto e anedônico).

Aliar concisão e leveza ao explorar uma história dramática surpreendem o leitor, que até espera, mas nunca chega a ver, o narrador escorregar nas tintas. Impressionado pela ficção de altíssima qualidade - pinceladas rápidas e certeiras que jamais resvalam para a vulgaridade – o leitor logo vê que Richard Yates se distancia de “contemporâneos” como Nelson Archer e toda a geração beat, Salinger ou Cheever (com quem é frequentemente comparado) por um apuro formal elaborado que é só seu.

“Mesmo bêbados, há que se manter uma certa compostura”, disse um dia o Francis Scott – ou coisa que o valha: lição cumprida à risca na magnífica cena do desabafo de Frank à esposa e a um casal de amigos, transformado em palavrório vazio e ininteligível no imediato instante em que é proferido, lembrando-nos que a verdade nem sempre é agradável de se escutar.

Enfim, um livro para ler, guardar e reler. Que todo casal dever ler, todo verdadeiro amante da literatura guardar no coração, e qualquer metido a literato reler.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 18/04/2009
Código do texto: T1545789
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