Gestão de pessoas: a ética do reconhecimento

ÉTICA DO RECONHECIMENTO NO ESPAÇO DE TRABALHO*

Wilson Correia**

INTRODUÇÃO

A presente oficina tem foco na gestão de pessoas em instituições de ensino e enfoque específico na tendência ética do reconhecimento como caminho à humanização da gestão de pessoal. Vale lembrar que constatações relativas a essa temática mostram o seguinte: no Brasil, 5 em cada 10 estudantes brasileiros de escola pública alcançam os estudos de 8ª série, e apenas 3 entre eles chegam à conclusão do ensino médio, razão pela qual no ambiente escolar o lado humano tem concorrido para que haja dificuldade para que esses estudantes obtenham sucesso em seus percursos formativos (MOISÉIS, 2009, online).

Por isso, o presente trabalho defende a atenção às questões humanas que perpassam a gestão institucional do ensino escolar. Para tanto, enfoca a gestão humanizada de pessoas, valendo-se da apresentação de alguns aspectos ético-valorativos, mapeados de modo que contribuam para um clima e cultura institucionais mais humanizados, de maior qualidade, satisfação e realização pessoal para todos quantos fazem e sofrem a educação brasileira.

NOSSOS VALORES EM GESTÃO DE PESSOAS

Notas numéricas, competitividade e quantidade estão pressionando todos os sujeitos da educação, com influência nas práticas de gestão de pessoas, no sentido de fragilizarem aspectos consubstanciadores da concorrência, da qualidade e do conceito. Por bem! Esses são apenas alguns aspectos visíveis mais destacados de uma ética gestada por princípios éticos surgidos nas sociedades de mercado, com os quais a instituição escolar parece estar em franco desacordo, uma vez que ela é uma organização social, e não uma empresa comercial.

Como fazer valer a ética do reconhecimento no ambiente de trabalho de uma instituição de ensino? Um caminho (uma metodologia) possível à resposta a essa indagação pode ser vislumbrando com o procedimento intentado neste instante, de mapeamento daqueles valores principais que poderiam balizar condutas, gestos, atitudes e comportamentos de gestores e de pessoal que atuam nos ambientes da educação formal.

Tendo como princípio amplo aquele que nos afiança sobre o valor da dignidade humana, nunca dada, pronta e acabada, mas construída a cada decisão administrativa e de exercício profissional, o respeito a esse princípio poderia se basear na noção de fair play, que, no âmbito esportivo, quer dizer jogo limpo. Mas, mais precisamente, o que é o fair play? Extraído do campo do desporto, como foi dito, dele pode ser apropriado um leque variado de elementos éticos que venham a contribuir para a gestão de pessoas, desde que se respeitem as devidas proporções e se saiba que exercício profissional não é prática desportiva. Em termos mais exatos:

“O fair play significa muito mais do que o simples

respeitar das regras; mas cobre as noções de

amizade, de respeito pelo outro (...), um modo de

pensar, e não simplesmente um comportamento

(...). O fair play é um conceito positivo. O Código

considera o desporto como uma actividade

sócio-cultural que enriquece a sociedade e a

amizade entre as nações, contanto que seja

praticado legalmente. O desporto é também

considerado como uma actividade que, se for

exercida de maneira leal, permite ao indivíduo

conhecer-se melhor, exprimir-se e realizar-se;

desenvolver-se plenamente, adquirir uma arte e

demonstrar as suas capacidades; o desporto

permite uma interacção social, é fonte de prazer e

proporciona bem-estar e saúde. O desporto, com o

seu vasto leque de clubes e voluntários, oferece a

ocasião de envolver-se e de tomar

responsabilidades na sociedade. Além disso, o

envolvimento responsável em certas actividades

pode contribuir para o desenvolvimento da

sensibilidade para com o meio-ambiente”

(IDESPORTO, 2009).

Assim, podemos ressaltar: o fair play qualifica uma mentalidade, um modo de ver, julgar, decidir, ser, estar e agir no trabalho, características a serem promovidas pelos profissionais da gestão de pessoal, fazendo com que os benefícios propiciados por elas alcancem toda a população escolar que atua em prol e na apropriação da educação formal.

OS COMPONENTES DO MAPA VALORATIVO

1 JOGO LIMPO

O jogo limpo pode ser compreendido neste contexto como o “chão” ou como o “território” da ética do reconhecimento. Se bem observado e conscienciosamente promovido, o jogo limpo nas relações profissiográficas pode concorrer para a aquisição de informações, conhecimentos, saberes, competências, habilidades e capacidades éticas facilitadoras da convivência e da vinculação humana no ambiente profissional-institucional no âmbito da escola. Supondo-se que uma instituição de ensino é, precipuamente, um agente social educador, mais do que nunca uma filosofia étoco-profissiográfica lhe cai apropriadamente. É o caso de, antes de educar os outros, ser, ela mesma, educada, sendo o exemplo empírico daquilo que dissemina em nível teórico-compreensivo nas suas ações de ensino e aprendizagem, dentre outras que se agregam ao seu múnus (missão) sócio-institucional.

2 AMIZADE

A amizade não é aqui lembrada como um sentimentozinho a mais no rol de todos aqueles inerentes à condição humana no mundo, na existência. Não! Além de todos os elementos atitudinais voltados para a consecução de um caráter à altura de uma instituição educadora, é justamente o senso do jogo limpo aquele que pode vir a fortalecer o afeto desse tipo de amizade. Sim, aquela amizade, segundo Aristóteles (1996), capaz mesmo de substituir o aparato judicial em uma sociedade de cidadãos, posto que revestida de um afeto primordial aos seres humanos, mas que, em nossas instituições que dão brecha, inclusive, para a existência do assédio moral, tantas vezes tem sido relegado a algo de somenos.

3 SENSO SOCIAL

Se for verdade que “Nenhum homem é uma ilha” (DONNE, 2009), como o profissional da educação pode tentar ser apenas uma célula-indivíduo no campo profissional? Na esteira desse pensamento, outro valor pode ser extraído da proposta de um jogo limpo à dimensão humana das instituições de ensino escolar: o que confirma os profissionais da educação como aqueles sujeitos que realizam uma prática social de alta relevância quando o assunto é um projeto de nação e a formação de um modelo societário mais humano, igualitário e justo.

4 AUTOCONHECIMENTO

De quebra, esses valores anteriormente assinalados não afastam a possibilidade de autoconhecimento que a prática do jogo limpo para uma ética do reconhecimento oportuniza. Eles podem fazer com que cada profissional saiba de seus pontos a serem melhorados e de seus pontos fortes como pessoa, profissional e cidadão atuante em ambiente de educação escolar, os quais também podem ser potencializados, reconhecidos e aperfeiçoados.

5 AUTOEXPRESSÃO

Se o outro me reconhece porque identifica em mim a humanidade de que ele também é portador, o fair play pode ser visto como o lastro comum desse reconhecimento mútuo. Com isso ele potencializa a minha dignidade humana, não deixando ao largo a dele próprio, fazendo com que eu não tenha razões para frear a minha ação no sentido de me autoexpressar. Isso fortalece minha subjetividade e delineia saudavelmente a minha identidade pessoal, profissional e de sujeito cidadão. Afinal, sou, reconheço-me como parte de um todo humano e imprimo minha pessoalidade naquilo que penso, projeto, realizo e ostento diante dos meus iguais e da sociedade, expressando-me de maneira livre, igual e espontânea.

6 AUTO-REALIZAÇÃO

Como é possível notar, a presente proposição implica a aceitação de um conjunto de valores que pode concorrer, de maneira nutritiva, e não tóxica, para o alcance da auto-realização, com vistas para a minha integração e para a integração do outro como seres bio-psíquico-sociais. É nessa condição que podemos potencializar em nós as nossas possibilidades formativas como pessoas, profissionais, trabalhadores e cidadãos, tendo aí a nossa humanidade vista como anterior aos papéis sociais cristalizados que desenvolvemos em nossa comunidade de serviço. É o caso de o humano ter precedência: vir antes e em primeiro lugar em relação a todos os outros componentes daqueles processos cotidianos que requerem produtividade, resultado, êxito, sucesso, eficiência e eficácia à altura da tarefa institucional da escola à qual me integro.

7 CONCORRÊNCIA

A competitividade pela competitividade não conta. A concorrência saudável, em que para haver ganhador não precisa, necessariamente, haver perdedores, pode nos levar ao alcance de objetivos, metas e finalidades comuns. Claro: nessa perspectiva, o senso de concorrência se torna plausível, legítimo e sustentável; não a ânsia competitiva, essa que na sociedade de mercado leva o homem e a mulher a terem que “matar um leão a cada dia”, nem sempre percebendo que, nesse gesto, um pouco deles próprios também termina assassinado. Não se trata, pois, nem de matar nem de morrer, mas de concorrer pela vitória do melhor, num ganha-ganha possível a todos quantos compartilham o enfrentamento de desafios comumente enfrentados.

8 COOPERAÇÃO

Paralelamente, então, ao senso de concorrência, surge como que naturalmente o sentimento e a disposição para a cooperação, o fazer conjunto, coletivo, em grupo, em equipe, compartilhadamente, uma vez que as atividades formativas a cargo dos profissionais podem e devem ser realizadas sob o signo da corresponsabilidade. A tese da cooperação, do trabalho compartilhado, emerge, aí, nessa mentalidade do reconhecimento e do fair play, como um dos valores mais expressivos no interior de uma instituição de ensino. Essa instituição que, atualmente, como vimos, também é chamada a cuidar de aspectos humanizantes e humanizadores internos, a começar pelo senso de responsabilidade humana e social que deve permear as ações de seus membros.

9 MENTALIDADE VOLTADA PARA A MELHORIA

Essa mentalidade, qualificada pela ética do reconhecimento, que implica o fair play, pode ser compreendida como um caminho ao desenvolvimento integral do profissional que passou por uma formação inicial e que se encontra em contínuo processo de qualificação por meio da formação continuada. Basta que a mentalidade nesse sentido seja formada com o desejo de se melhorar sempre e cada vez mais, o que requer a decisão de se viver em uma saudável inquietude e em um bom senso de inconformismo, no sentido de se querer a auto-superação, o aperfeiçoamento constante, a melhoria contínua.

10 PRAZER

Quem duvida que tudo isso concorra para que, ao lado do desgaste natural que é o ato de trabalhar, a atuação profissional possa ser uma fonte agregadora de prazer, alegria e satisfação? Não creio que isso seja proibido, nem crime nem pecado, mas algo a ser desejado como indicativo de satisfação e realização profissional, essas que, às vezes, tanto faltam na escola. Ninguém é ingênuo de acreditar que o trabalho, todo trabalho, dignifica o humano. Não! Exemplifiquei com o caso do assédio moral como o trabalho, além de despersonalizar e desumanizar, também pode servir de ocasião para mal-estar, sofrimento, penúria humana e até de sevícia. Por isso, entendo que faz parte da missão dos agentes da gestão de pessoas a preocupação e a implementação de programas que visem a potencializar a vivência do prazer de produzir, atuar e contribuir para o desenvolvimento humano e social em nossas instituições.

11 ENVOLVIMENTO

Se “Sem envolvimento não há desenvolvimento” (FREIRE & BRITO, 1988), mais do que nunca o se sentir parte, comprometido, alimentando a noção de pertencimento, passa a fazer sentido em um programa eticamente qualificado pelo reconhecimento comum e pelo fair play aqui apresentados. Isso, por si só, justifica a compreensão e a busca pela concretização do valor do envolvimento. Nessa perspectiva, o envolvimento pode ser visto como legítima condição de possibilidade para o desenvolvimento integral daqueles que atuam em nossas escolas, o qual pressupõe todos os outros valores anteriormente já assinalados. O pessoal de gestão de pessoas de nossas escolas podem ou não podem voltar a atenção para esses valores? De minha parte a resposta é pela afirmativa, sempre!

12 LEALDADE

Esse valor implica o entendimento de que a reciprocidade ética nos afiança que ser leal ao outro pressupõe, antes, a lealdade a si próprio. Sim, porque o que motiva a heterolealdade é o sentimento e a compreensão de que o outro tem a ver comigo, com o que faço, quero, desejo e busco para mim e para o meu entorno. Por isso, além do elenco de valores citados e que podem ser buscados, há, também, os relacionados à lealdade, esse “cimento” das inter-relações humanas que fortalece a interação humano-sócio-profissional de todos quantos se encontrem atuando na educação escolar. Ser leal não é ser fiel e aferrado ao outro como a uma sua extensão ou como a uma divindade, mas, sim, como respeitador de alguém lógica e racionalmente capacitado à manutenção da reciprocidade básica às responsabilidades compartilhadas.

13 OUTROS VALORES

Isso só faz sentido sob o respeito à lei e ao outro, salvaguardando a legalidade e dignidade humana para robustecer os princípios da ética do serviço público, pois mesmo as instituições privadas de ensino o são por concessão do Estado, para as quais valem a mesma deontologia do setor público: impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Tudo sob a noção e a prática da responsabilidade, do reconhecimento e do jogo limpo. Como foi visto, o jogo limpo, se bem encaminhado, pode ser sinônimo da sanidade que sensibilize o profissional para que esse seu modo de pensar e de ser-estar institucional alcancem o entorno de que é parte, o meio ambiente. E sob a perspectiva da solidariedade e do bem-estar de todos quantos se valem de informações, conhecimentos e saberes para se conduzirem na existência, no tempo e no espaço.

CONCLUSÃO

A título de conclusão, resta lembrar que o objetivo inicial desta oficina expressou o propósito de apresentar aspectos da ética do reconhecimento passíveis de serem aplicados à gestão de pessoas na educação escolar. Foi o que intentei do início até o presente instante, num percurso expositivo que pressupôs a educação escolar, a gestão de pessoas nesse contexto e a necessidade de uma postura ética no trato das pessoas em ambiente institucional.

Outro objetivo expressou o anseio de oferecer um roteiro ético mínimo às ações para a concretização da gestão mais humanizada de nossas instituições; um roteiro que contribuísse para o cumprimento do papel social da instituição de ensino, dos profissionais da educação e dos estudantes de nosso país. Espero não ter passado muito longe desses meus objetivos!

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COMPLEMENTO

Para pensar:

O TRABALHO, OS TIPOS IDEAIS E A FOFOCA

"As sociedades criam tipos de personagens que

todos procuram imitar, e tipos de personagens que a

maioria procura não ser. Não falamos só da

'sociedade em geral' - termo bastante confuso.

Falamos das pequenas sociedades das quais cada

um faz parte: a família, os amigos, o trabalho, a

turma, o bairro.

Em cada uma delas, existe o jogo dos tipos ideais e

dos tipos negativos - mocinhos e bandidos.

Dentro deste contexto, todos os cidadãos de cada

mundo se divide pelo menos em duas metades, a

metade 'boa', 'certa', 'normal', 'natural', que acredita

estar identificada com os ideais da sociedade em

que vive. São os proconceituosos, os quadrados. A

outra metade 'má', 'errada', contrária à natureza,

aqueles que por atos, atitudes e omissões, se

opõem às verdades estabelecidas.

São os MARGINAIS (SUPERIORES ou INFERIORES

- só o futuro determinará quem é o que!)

Fofoca oficial é a dos quadrados contra os

marginais. Mas o contrário também existe.

A DESGRAÇA É QUE O CONTRÁRIO SEMPRE EXISTE!

E é bom não ser ingênuo dentra desta rede

diabólica. Também os quadrados fazem fofoca

contra os quadrados - porque eles são iguais. E

também os marginais se criticam asperamente.

VIVA A HUMANIDADE! - (se ela conseguir

sobreviver). (GAIARSA, 1978, p. 37-38).

BIBLIOGRAFIA

1 ARISTÓTELES. "Ética a Nicômaco". Nova Cultural: São Paulo, 1996. (Col. Os Pensadores).

2 DONNE, J. [“Nenhum homem é uma ilha”]. Disponível em: <http://www.pensador.info/frase/ NTE2MzQ4/>. Acesso em: 30.07.2009.

3 FREIRE, R. & BRITO, F. "Utopia & paixão: a política do cotidiano". 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

4 GAIARSA, J. Â. "Tratado geral sobre a fofoca: uma análise da desconfiança humana". 5. ed. São Paulo: Summos, 1978.

5 IDESPORTO. "O desportivismo no jogo é sempre vencedor: fair play - the winning way. Disponível em: <www.idesporto.pt/DATA/DOCS/LEGISLACAO/Doc121.pdf>. Acesso em: 30.07.2009.

6 MOISÉS. D. "Brasil levará 247 anos para ter educação de qualidade". Disponível em: <http://blog.estadao.com.br/blog/nos/?title=brasil_levara_247_anos_para_ter_educacao&more=1&c=1&tb=1&pb=1>. Acesso em: 30.07.2009.

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*Subsídio para oficina homônima de formação continuada, a ser ministrada por Wilson Correia. Local: Colégio Estadual Professora Ranulfa, em Aurora do Tocantins. Quando: 23/10/2009. Carga horária: 04 horas (14h às 18h).

**Wilson Correia possui Licenciatura em Filosofia pela PUC-GO, Especialização em Psicopedagogia pela UFG, Mestrado em Educação pela UFU e Doutorado em Educação UNICAMP. É professor Adjunto na UFT. Tem experiência na área de Filosofia da Educação, com ênfase em: Ética, Currículo, Ensino de Filosofia, Formação Docente, Ética e Cidadania. É autor de TCC não é um bicho-de-sete-cabeças. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br. Sítio: http://www.recantodasletras.com.br/autores/wilsoncorreia.