Todos os egos de um ser

E lá estava, de risos desdenhosos, o esboço de mim mesma dançando no espelho à minha frente. Sei que as feições e traços eram os mesmos de outrora, mas aquele reflexo era como se fosse além das superfícies e pudesse atravessar todas as barreiras corpóreas, chegando a apreender, com certa perfeição, os caracteres de uma existência já tão distante que nem minha parecia ser.

E, se arriscava qualquer movimento, a mudança no espelho era cópia fiel. Já os olhos... ah, os olhos! Não mais bolinhas de cristal inconstantes e cheias de futuros - ah, não. Agora, transfigurados em poças de sangues desbotadas e sem expressão, lutavam contra a máscara cruel que abafava e escondia tudo que costumava ser genuinamente meu, sufocado então feito a mão suada por sob a luva.

Como eu me transformara naquilo, nem bem sei. Foi como se um dia, ao acaso, me olhasse de relance e lá estava outrem - não eu - preenchendo a minha massa, ditando meus pensamentos. Primeiro, o susto. Depois, a negação, seguida de perto pelo o que não se pode compreender. Por fim, não tardou a chegar a repulsa, o asco inesgotável - eu desprezava tudo aquilo em que eu havia me transformado. E, então, dor, muita dor.

Seria mesmo provável que a minha identidade tivesse, enfim, se rendido e aceitado ser moldada conforme meus medos e desejos de ser aceita? Teria a vida social graduado as minhas caraterísticas de maneira a mim estranha e eu, alheia às conseqúências, permitido tudo, passivamente, como se trouxesse uma venda nos olhos? E, se não fosse assim, como seria? - como eu seria?

Acredito que somos resultados de certos fatores - o ambiente em que crescemos, as pessoas com que por fortuna (ou não) acabamos por nos relacionar e os impulsos, escolhas e lições que nos são apresentados durante a vida. E não são todos esses parte da convivência em sociedade? É possível evitá-los, fugir deles, esconder-nos debaixo das nossas camas como crianças em noites chuvosas? Possível, sim - improvavél, também. Somos forçados a cada um desses fatores durante toda a nossa estrada - eles já são peças por demais intrínsecas no complexo conceito de "ser um humano". Minha identidade e meu caráter são moldados dentro de mim, mas as influências externas são óbvias - eu me moldo a partir dos outros, tomando seus exemplos e valores como bons ou ruins, interagindo, discernindo entre os opostos. Pergunto-me se haverá algo mais importante no mundo do que os contrários - sem eles, como existiria todo o resto? Uma coisa só pode existir uma vez que compreendemos a sua inexistência. Assim, a identidade de uma coisa depende profundamente daquilo que se opõe a ela - o singular se apóia nos ombros firmes do plural ao mesmo tempo que lhe serve de apoio. Identidade se faz disso tudo, do singular e do plural, e se entrelaça no íntimo, por mais seja exalada para o exterior, e é mutável, ao mesmo que pessoal e única, tão única.

Tendo considerado tudo isso, não me parece tão estranho que, naquele espelho intimidante a me encarar, eu me visse constituídia de tantos paradoxos, como se dentro de mim existisse não só uma pessoa, mas várias, a coabitar e brigar entre si para ver qual se sobrepõe a qual. E, no fim, todas não passavam de uma coisa simples, coisa esta escrita tão brevemente - isto é, tudo aquilo era nada mais do que eu.

A condição de humana que me prendia (ou libertava, pode ser) dava-me a possibilidade de me multiplicar em várias, e tantas! Não sou apenas uma verdade e sim muitas, nenhuma errada, nenhuma certa, só diferentes, algumas opostas e, por isso, dependentes umas das outras. E, por mais que parecessem tão conflitantes entre si, se entrelaçavam com única harmonia. Isso me dava algo profundamente meu e jamais de qualquer outro: uma semente, diferente de todas as outras sementes do mundo, pronta para se desenvolver em uma árvore, diferente de todas as outras árvores, cujos frutos terão seu próprio mel, mais ou menos doce do que os outros. Por mais que as coisas ficassem ruins, minha uniformidade sempre haveria para me consolar. Isto é, o meu eu, a minha identidade, a minha glória.

Julia Cardoso
Enviado por Julia Cardoso em 03/07/2006
Código do texto: T186917