TODO CRIANÇA

Algumas manchas persistem em turvar essas coisas que eu preciso lembrar sem interrupções.

Alguns toques de crueldade humana me deixam com dificuldade de concentrar-se.

Eles estão ainda bem perto e tudo é bem doce, no sentido da fantasia, da minha história linearmente real, é tudo muito doce, e estamos todos ainda bem pertos... Ainda!

Nada vai voltar eu sei, cada minuto que vai nos tomando não vai mais ser igual àqueles lá de trás, mas adaptação é algo que eu sei quase domino, já foram, e sei que ainda serão, tantas situações e modos de vida diferentes que não me preocupo, só acho triste, porque as coisas que eu amo não se adaptam tão fácil quanto eu, e geralmente ficam para trás.

Essência, temos junto uma inigualável, e por mais que nos atordoem ventos humilhantes, a nossa essência só se fortifica, só conseguimos mais coragem juntos... E isso tudo o que eu falo é sem pensar muito, sem nada do que agimos em comum seja acionado em palavras. Somente sempre muitos olhares, compreensão, satisfação, união sempre!

No entanto é inevitável, apesar de toda pose forte que tentamos, ser atingido pelas fagulhas altamente mortais da saudade, o que é normal, o que nos torna mais normal, pois quem tem saudade de nada, ou não tem passado, ou não tem memória. E só o que me dificulta em manter estes dois amigos, memória e passado, é o que ainda se acumula, o tempo que vai correndo, escapando entre nossas mãos enlaçadas, fazendo memórias individuais, embaladas a vácuo, pressurizadas num cérebro que reluta em armazena-las... Inevitável.

De qualquer lugar que olho o céu, sei que é o mesmo de minha infância, ele não mudou, então por que eu mudei?

Eu não pedi pra crescer, eu as vezes não consigo dormir, eu tenho de fazer o que me pedem sempre, eu tenho que seguir uma senhorinha chata chamada sociedade, eu não sei fazer linguagem de sinais, não sei mais as regras do pega pega.

...

Alguém me ensina. Alguém me diz do que se brinca hoje? Alguém quer fazer picolé de kisuco comigo? Ou então uma rodada de ‘stop’, Policia e Ladrão, Banco Imobiliário? Aquele que eu mesmo fiz com cartolina e papel sulfite. Vocês também cresceram?... Aliás: onde vocês estão? O que fazem agora? O que fizeram ontem? Quando vamos ter tempo para brincar?

Me persegue uma vontade de espalhar todos os brinquedos no chão da sala, de esperar a nega maluca pra lamber a tigela suja de massa. Fazer minhas histórias com os bonecos de plástico, fazer meus desenhos que serão os personagens de meu livro de ficção. Exijo tudo de volta. Meu irmão me acordando todas as manhãs, nós juntando moedas pra comprar salgadinho, eu lembro na época que chegaram a custar só sessenta centavos. Nossas encenações de brigas medievais, nossas discussões tão tolas e deliciosas, o meu mano, o Di modelo, o Di tão engraçado, e agora seu filho no meu colo, o tio dindo renovando as vidas novas. Os cd’s que a gente corria junto atrás, a Elis Regina que ele me ensinou a gostar, o caminho da escola que ele me ensinou tão bem. Eu lembro do tempo em que nada me comovia, não sabia me emocionar, O mocinho de gelo diziam, e quem dizia já está tão longe, será que está bem?

Eu já dei aula pra quem estudou comigo, sei que meu grande amigo de infância já casou, que outro caiu no mundo das drogas, e nem um pulo de coragem dentro de mim pra ir dar uma força... Eu vi gente que eu amo morrer, eu tive de enterrar quem eu jurei ‘para sempre’, vi cimento escurecendo o inerte, me afastando das mãos que me tocavam, do sorriso que eu contemplava... Os meus óculos fazendo escudo de olhos bem mais azuis, eu me lembro de não precisar de óculos.... Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!

Eu me vejo correndo naquela rua sem saída, a vizinha me oferecendo pipoca, um pedaço de meu shorts no muro de quem prometia arrebentar nossa bola. Eu vou dormir no meu quarto quente de madeira, ver as baratas passearam pelas frestas no chão, ver digimon todo de novo, voltar da escola e saber que duas torres importantes caíram. Vou jogar bola em frente ao muro branco, fugir da minha mãe pra não apanhar. Dar as mãos a meu pai pra formar o nosso sol, esperar ele chegar para jantarmos juntos, vou tentar ser alguém como ele, eu quero mais dele em mim, eu quero quem eu não tive tempo de ter, quem se foi sem me dar tchau.

Como puderam derrubar o goiabal onde a podridão daquelas frutas eram armas em nossas mãos e perdia-se a imensidão naquelas horas, naqueles campos intermináveis de verde, só árvores e amigos?

Meu tênis novo para o 7 de setembro, meu texto lido para toda sala, por ser o melhor, a professora pedindo: faça jornalismo, você nasceu pra isso! E fazer de amigos os professores, ser tão diferente de causar inveja, ver a vontade de me meterem em encrenca, e rir com o diretor.

Eu quero o macarrão de minha avó, eu quero as gaiolas de meu avó, eu quero aquela havaiana de bichinhos e o lego completo que nunca tive, eu quero vocês e mais nada!

É pecado falar besteiras,é pecado pensar em nada? É proibido não ser adulto, é proibido brincar mesmo grande?

Entendam que eu quero, que minha alma pede e precisa ver aquela porta branca outra vez, o super nintendo e o jogo do Mário. Eu preciso ouvir Fame e Vengaboys pra dançar na sala sozinho numa tarde qualquer, dublar Lasgo em frente ao espelho, fazer meu próprio filme, conversar com o vizinho pelos tijolos vazados do ranchinho! Opa, tenho de alimentar meu periquito azul, ir de bicicleta ganhar uma bala de minha avó... dar mais um abraço em quem posso. Outra vez aprender a fazer lasanha, farofa, criar gosto por cozinhar e fartar-se palmito, rir nos aniversários, usar chapeuzinhos de aniversário, pagar as contas de minha mãe na venda, vê-las dizendo: “Que lindo ele é!” Não ter de fazer a barba, espremer espinhas, temer a calvície... Passar as férias na casa de minha tia, conhecer Hobery Totol, ou corretamente Harry Potter, e tomar café com os 4 juntos, o pão doce com margarina e o café com leite na xícara de louça azul. “O último limpa a mesa e tira a toalha”. Ver meu irmão no sofá da sala me fazendo de bobo, jogar videogame com ele, ficar bravo por perder, adorar Ana Maria Braga e Sindel do Mortal Kombat. Querer participar do Chaves e Carrossel.

O que envolta agora é uma neva boa, de que eu aproveitei bem o que pude. E tantos planos, aventuras que nos prometemos e jamais cumprimos, será que ainda dá tempo? Você só cresce se quiser, e ainda ser criança não significa deixar compromissos, não ser responsável e tratar de negócios... Eu ainda sou e morrerei crianças, pois para que irei me render a um mundo que não se alonga, que não fala sozinho, que cantar do nada é mico? Daí morrem cedo demais, contraem doenças inexplicáveis, não tem nem uma mochila ou tênis velho... Eu não quero isso pra mim: planos, rotina, cotidianos, lâmpadas sem lustres no teto, ou conversas que signifiquem absolutamente nada! Não quero, mas pode me ver um “tamagooshi” por favor! O bichinho virtual que eu ganhei no bagageiro da bicicleta... A bicicleta que ainda ando :D

Um precioso tempo parece que vai, mas é para que outros possam ter a mesma sensação que tive, que saibam valorizas estas pequenas coisas, um LP da Xuxa, uma forma de picolés, a ‘fábrica de coxinhas’, o moletom do Taz mania, os desenhos do Perna Longa e Patolino, Caverna do Dragão torcendo pra que eles achem o fim.

Comer uma bacia de pastéis por ser tão guloso, tomar Dramim pra não enjoar no caminho até o perfeito final de semana na casa de meus padrinhos, e aquelas areias do campeche nunca mais foram pisadas... No que ser´as que me transformei? Ou a mutação é constante? Com esperança basta apenas um despertar para que ainda seja eu mesmo.

Ter meu tio longe doía, minha tia longe ainda dói. Meu outro avô bem, tão bem, agora nem tanto, achar meu pai bem forte, agora nem tanto. Ver rugas no rosto deles e não me conformar. Já é tarde e eu nem tenho um pinheiro de natal de verdade com luzes compradas pelo meu pai. Nem varais de bambu pra serem elogiados pela linda roupa, ou poder imitar o barulho da máquina de lavar roupa para minha mãe morrer de rir, ou ainda um Escort azul que nos levou a um Rio Grande do Sul distante, e chamar este carro de ‘azulzinho’, decorar as placas dos nossos carros e não os acordes das músicas. Ah, minha coleção inteira dos Powers Rangers, as fitas K7 do meu irmão. Os Mamonas Assassinas na TV, agora eu estou na TV agora, eu tenho que ligar pra matar saudades, imaginar como estão vocês na minha cidade tão nojenta, mas minha cadela não sabe falar, e preciso dela também, afinal não foi a toa leva-la apressado numa caixa na bicicleta, cruzando caminhões e estradas de péssimo calçamento. Excursões a um campo abandonado onde criamos um cachorro entre amigos, eram verdadeiras cruzadas aqueles passeios no campo, onde fui descoberto por gazear várias aulas. Onde descobri que sabia escrever, que sabia ser engraçado, onde alcancei pontos da vida que mantenho, além do alho cru, de sempre achar que alguém está me chamando, e de lhe beijar-lhes com boa freqüência...Tenho medo de perder, isso é verdade. Por que quem vai me dar isso tudo, essas coisas tão simples e raras? Isso é muito caro pra quem não sabe viver, pra quem quer ser certo. Vivendo casamentos, vidas próprias, formaturas, construções... E meu mundo de brinquedo, meu globo feito de infância? Os tempos que eu achava que existiriam vários iguais de mim e não suportava bolacha “waffer”. E Depois de encarar a luxuria de uma faculdade, queria de volta o Elder, a Natassha, a Samantha e o Jonas... Um quinteto demais, e a Dna Iara, e o Dna Rosane e o Ronaldo.

As canções mais idiotas que poderíamos inventar... Mas agra tem Sr. Celso, o Beto, o André.

Algumas, muitas coisas se vão, mas vem outras. Não que substituam, não que contrapesem, mas fazem esquecer, dar mais honra ao presente.

Ainda me preocupo em acorda-lo quando bato na parede ao deitar, só então lembro que ele não dorme mais no quarto ao lado, ando devagar durante a noite para o chão de madeira não ringir, mas ele não é mais de madeira. Queria o Di me acordando de novo todas as manhãs, seu Raul Seixas se enchendo os ouvidos, os futebóis naTV que reuniam ele e o pai, aquela parentalha da mãe querendo ver o quanto eu era bonito, sentado numa farta mesa de café, fazendo visita de médico. Eu quero, quando na verdade eu tenho, apenas mudou o formato.

Eu sei onde vocês estão! Só não admito estarem mais tão em mim, só não admito me aceitar mudado, é por isso que decreto infância... Nós merecemos ser criança... Vamos correr, ser felizes, ter nossos horizontes em lados opostos, mas vamos ser felizes, sem nós mesmo talvez... Mas uma vez mais lembrem-se, façam amar-se, sejam vocês de anos atrás e não tenham medo, vergonha, isso é tão revigorante, maior que a fome que tinha, maior que os bolinhos de carne que fazia, maior que meus carrinhos de metal, maior que meu irmão e meu pai bem grandes, maior que Dna Denise, e Índia, que o Jandrei, Léo, Junior e Juninho, todos os primos, todas as praias, todas as bruxas e coisas de gesso, as argilas e cartilhas, livros didáticos e conselhos.

Tudo vai mudar todo dia, as coisas vão ter a voz diferente, deixar de ser tão quietas... Mas seguiremos os caminhos, eu serei sempre assim, ao menos peço por isso sempre! Não me imagino um dia sem amar estas pessoas, sem gostar de CL, sem ser escritor, sem ser tão palhaço, ator e criança!

E por isso isso tudo ainda vive, ao menos em mim, ao menos durante as eternidades que puder, as lembranças que caminharem de frente, estarão comigo, agora chega de papo, vou pegar a mochila pra ir a aula, dar tchau ao meu pai (minha mão que era tão pequena, alcançou o tamanho da dele), Se minha mãe deixar e o Di quiser, depois da aula a gente se vê... E vou ainda criança uniforme branco e azul marinho, mochila preta da Samarra nas costas, sob o sol para o colégio... me concentrando, me apegando e revivendo nas eternidades que eu puder!

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 30/11/2009
Reeditado em 30/11/2009
Código do texto: T1951701
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