Os contrastes - Pt. I: Infância

OS CONTRASTES – Parte I: Infância

Março/2010

Durante boa parte da minha infância, vivi entre dois mundos de situações contrastantes entre si: a casa materna, onde passava a semana toda, e a paterna, onde permanecia desde a tarde de sexta à noite de domingo.

Com minha mãe, vivi como que na pobreza. Compromissado com a verdade, é preciso dizer que nem sempre foi assim. Em determinada época, relembro que a pensão que recebíamos sempre nos permitia fazer uma compra farta todos os meses. Um chocolate branco em especial parecia ser a minha recompensa tão esperada, ao término de cada trinta dias. O dia de receber o pagamento era sempre o mesmo em que desejávamos comer o que mais era desejado por nós. Hoje, tantos anos depois, passo diante de uma eletrônica onde outrora nós nos deliciávamos com pastéis, tão logo que havíamos deixado o banco.

Aquela época então se passou. Logo a moeda brasileira decaía. E automaticamente tiveram início nossas dificuldades. Eu media aquela inflação na quantidade de doces sortidos que já não me era mais possível comprar com certa quantia em dinheiro.

Por diversas vezes, minha mãe trabalhou como diarista para que desse à casa condições um pouco melhores de se viver. Não me era possível compreender, àquela época, o porquê a pensão que recebíamos do meu pai era tão baixa. Não se sabia e sequer se sabe a causa verdadeira disso. Também não é intenção minha de hoje culpar a este ou aquele por aqueles tempos que apesar de árduos sob determinados pontos, foram incrivelmente válidos e felizes. O fato é que por duas vezes, moramos em casas de madeira compostas de duas peças; e uma, era composta de uma única peça, também de madeira, aos fundos da casa da minha avó materna. Lá, costumávamos lavar nossos corpos em uma pequena bacia, quando muito em uma banheira.

Enfrentamos inúmeras dificuldades. Ainda hoje, ao reencontrar meu tio Albino, sempre sou lembrado dos tempos em que procurávamos comprar algo em uma mercearia de vila, fazendo a promessa de que tudo seria pago no começo do mês seguinte. A verdade é que tivemos as famosas “contas” em praticamente todos os armazéns e mercearias à nossa volta. E sempre minha mãe cumpriu com seu papel de honestidade, destinando as primeiras quantias do salário ao aluguel e às contas em geral. Pode-se dizer mesmo que se também passamos dificuldades financeiras, isto se deve ao fato de ela, de modo honrado, nunca ter permitido atrasar suas dívidas.

Havia vezes em que até mesmo não tínhamos o que comer. Com um sorriso, recordo a época em que procurei me desfazer de alguns pertences pessoais, vendendo-os aos colegas de colégio e, ao primeiro instante estando em casa, eu entregava a quantia conseguida à minha mãe. E então, me era possível, à sua solicitação, ir até algum estabelecimento próximo para comprar o que estávamos com vontade.

Minha mãe sempre fez o possível para que tivéssemos as mínimas condições de vida. Pensava muito na questão da higiene e da limpeza. Era comum ouvir elogios dos poucos colegas que tinham a permissão de me visitar – pois ela, com razão, sempre foi muito rígida com as minhas companhias – no que diz respeito à limpeza de casa. E para ela, eu, apesar de pobre, sempre deveria estar “limpo e bem vestido”.

Na infância, meu apelido era de "tigela". Era uma referência carinhosa ao meu corte de cabelo que era bastante claro e da mesma forma que o meu pai, escureceu com o tempo.

As visitas à casa paterna ocorriam sempre às tardes de sexta, geralmente após o expediente do meu pai. Anos mais tarde, minha mãe disse ter sido iniciativa sua a de fazer com que eu me aproximasse do meu pai, já desde cedo passando consigo os fins de semana.

Eu retornava da aula, muitas vezes acompanhado de um cão que sempre me parecia ser um labrador. Chamava-se "Grandão", sendo praticamente da mesma altura que a minha. Sua esperteza era admirável, senão até digna de espanto, pois ele me conduzia todos os dias até a aula e, pelo que me é contado, saía de casa geralmente dez minutos antes do seu término e me esperava. Talvez foi com o "Grandão" que tive minha primeira grande amizade.

Logo, preparávamos, eu e minha mãe, a mochila que deveria levar, com meus pertences, para o fim de semana que passaria fora. Nos primeiros anos, meu pai, junto com minha madrasta, me apanhava com uma Brasília verde.

Às sextas, permanecíamos em casa. Enquanto meu pai assistia aos noticiários e minha madrasta preparava o jantar, eu me deleitava naquela biblioteca que sempre parecia me encantar. Borges certa vez disse que o primeiro grande acontecimento em sua vida foi a biblioteca do seu pai. Eu diria o mesmo.

Sempre após os jantares, eu ouvia meu pai tocar piano. Apesar das portas fechadas, o som se propagava por todos os cantos. Nas primeiras vezes, tudo me chamava a atenção, mas com o tempo eu fui perdendo o interesse em vê-lo tocar. A música, no entanto, ainda levaria anos para vibrar dentro de mim.

Pela manhã de sábado, costumávamos sair às compras. Anna, minha madrasta, costumava procurar tecidos. Era costureira e criava o modelo de muitas das suas próprias roupas. Meu pai saía à procura de livros e eu o acompanhava. Em alguns anos, passamos a freqüentar também as bancas de produtos importados. Ele geralmente estava à busca de aparelhos eletrônicos, com os quais deveria fazer experimentos médicos.

Ele realmente foi um grande inovador, no que diz respeito às técnicas de cura usadas. A começar pela Acupuntura. Junto de brinquedos infantis, ele conectava algumas "canetas elétricas". Dos seus aparelhos, provinha um barulho constante. Um som agudo indicava o ponto encontrado. Ele o pressionava com a ponta das suas canetas, até que decidisse molhar um palito de madeira, desses usados em churrascos, em um vidro com iodo. Então, pressionava a ponta no lugar indicado. Era, basicamente, uma acupuntura sem agulhas.

Suas técnicas foram se aprimorando. Dos aparelhos já não provinham mais ruídos constantes, mas músicas. Melodias de hinos ou músicas conhecidas eram executadas, a cada ponto de acupuntura encontrado.

Talvez foi na infância que conheci, pela primeira vez, a beleza da solidão. Sem que admitisse, meu pai, na verdade, possuía idade para ser meu avô. A convivência com aquele casal, portanto, era bastante incomum. Tudo se mantinha quieto. E eu então me deleitava: ora na biblioteca, ora no quintal de casa.

Pelas tardes de domingo, saíamos a passeio. Normalmente tirava-se da garagem outro carro, especial para este dia. E com ele, andávamos até o bairro mais nobre da cidade, pois minha madrasta buscava inspiração naqueles modelos de casas antigas para a construção daquela que viria a ser sua última morada.

Nos primeiros anos de convivência com o meu pai, fui levado, a convite da escola, para um encontro dos melhores alunos da cidade. Foi um grande orgulho para a minha família. Ao lado de uma garota, com quem alguns diziam ser minha namorada, representei minha escola.

Uma característica surgida nestes tempos de infância e que posteriormente assumiu um papel significativo diz respeito à música. Por um lado, eu era acostumado à música dos anos 70, 80 e começo dos anos 90 por lado materno. Minha mãe durante uma época colecionava discos de artistas que àquela época eram venerados. Abba, Rod Stewart e assim por diante. Era um tipo de som mais comum, das rádios, mas que, ao mesmo tempo, não deixava de conter boas melodias. Uma música moderna que ainda não havia assumido o verdadeiro caráter de regresso, tal qual se vê nos dias atuais. Ainda, pode-se dizer, havia algo a se passar através das suas letras. Muito obviamente que já naquela época, haviam indícios de que as coisas tomariam proporções maiores, mas se prezava em geral por uma boa música. Àquela época, a música passava despercebida aos meus ouvidos. Se eu a cantei, um dia, foi quase que por osmose. Enquanto isto me ocorria durante a semana, de sexta à domingo eu era familiarizado com um ambiente calmo e erudito, assim se podendo dizer. Música erudita era a única vertente ouvida por meu pai. Naquele seu velho Escort, somente se ouvia compilações que traziam o melhor de compositores como Bach, Vivaldi, Liszt, Haendel, Chopin, Beethoven. Sempre e sempre. Nenhuma única vez foi diferente. Assim, anos mais tarde eu deveria assumir um caráter em relação à música que me aproximasse dessa gostosa nostalgia, tanto da música mais comum quanto daquela erudita. E ainda hoje assim segue, sendo sempre movido pela nostalgia. É bastante comum que em uma ou outra tarde, eu escolha um álbum de alguma situação que me foi marcante e passe por uma espécie de transe, como se estivesse imerso no próprio passado. Há vezes em que a música que ouço me soa como uma máquina do tempo, que apesar de invisível e de funcionar apenas com os meus próprios métodos, me leva a incríveis passagens da minha vida.

O distanciamento da biblioteca paterna deveria ocorrer em duas fases: primeiro, com a televisão a cabo; segundo, com os aparelhos de jogos eletrônicos.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 08/05/2010
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