COZINHEIROS DA VIDA

Vivemos parte das nossas vidas cozinhando conceitos e definições, criticando algo ou alguém e, para variar, a nós mesmos criticando. Por mais que tentemos ou finjamos, estamos frequentemente nesse exercício. Talvez seja a nossa vocação filosófica. Estou também cozinhando.

Quem cozinha precisa, em geral, de receitas, mesmo que essas estejam apropriadas na prática e juntadas à criatividade. Os ingredientes dessas receitas de vida envolvem moral, ética, crítica, lógica, moldes de toda sorte. Preparamos o bolo e o colocamos no forno até chegar ao ponto. Ou deixamos “solar”, queimar, perder. Preparamos a panelada e ficamos ali, tomando conta para ficar tudo como manda o figurino.

A minha prática de cozinha é quase zero e, devo nesta comparação tostar um pouco. Mas quem entende dela, sabe que se pode improvisar, recriar, inventar. Certa vez li que a cozinha francesa, tão requintada, chegou a tal status após as agruras da guerra.

A cozinha e a vida são batalhas que formam a guerra do cotidiano. E esse cotidiano nos focaliza mostrando as cascas que deveriam ser eliminadas em nós. Por exemplo, a intolerância, o egoísmo, o narcisismo, o falso moralismo, a bondade extrema, a idolatria, a religiosidade fanática, o amor cego, o sentimentalismo, a utopia, a irresponsabilidade, a malícia, o subjetivismo, a inconsequência, a impulsividade, a emoção, a sensibilidade, a ironia, o sadismo, o masoquismo e mais e mais.

Sempre há aqueles sujeitos sociais puros e politicamente corretos a nos mostrarem veredas, opções, saídas honrosas, soluções religiosas ou científicas. Sempre há também os revoltados, os imensamente conscientizados e conscientes, os críticos ferozes, os irresponsáveis, os politicamente incorretos de toda sorte. Os ex-fumantes catequizando fumantes convictos e nada arrependidos.

Se há opções, deve haver a possibilidade de escolha, isto nos parece racional, não? E se digo isto, estou apontando veredas, não? Não sei. Acredito mais que estamos abrindo as cartas sobre a mesa, sem alguma delas na manga. E com quem estaria jogando? Estou jogando com a multidão que há em mim.

Nesse cozinhar da vida e nesse jogo de sobrevivência social e aceitação do que sou e como sou, declaro a mim e às outras de mim e deixo aqui anotado para outros que, porventura, cozinhem a vida e joguem consigo mesmos as cartas do existir, que encontrei uma estrada vicinal muito atraente.

Essa estrada é bela como nem a mais bela das primaveras conseguiria ser. Nela eu me permito e permito à multidão que mora em mim que sejamos um pouco de politicamente corretos e outro tanto de politicamente incorretos. Estamos satisfeitas e satisfeitos, diria também no masculino plural, pois, pensei cá, com esses companheiros íntimos, que temos em um só corpo e mente todas as possibilidades. E como fazemos um pouco do exercício da loucura, seguimos sorridentes, incautos e insensatos, mas felizes em cozinhar a vida. E não dos desfazemos das nossas cascas, pois nelas estão as nossas forças.

Para cozinhar bem a vida, requer astúcia, bom senso, paciência e gosto pela criação. Exige noções apreendidas ao longo do tempo, mas sabedoria para modificá-las, quando os sabores já não nos apetecem mais. Não se pode desejar apenas a troca de temperos, é preciso inovar a receita, acrescentar ou retirar ingredientes, mudar a técnica de cocção, quem sabe deixar em banho- maria, ou não, quem sabe fritar, tostar, ou cozinhar em fogo brando. É urgente em todos os dias, criar uma receita que agrade além do paladar, que instigue o olfato, que faça brilhar a visão e que acima de todas as coisas, nos sacie suficientemente. Só assim vale a pena cozinhar a vida e tornarmo-nos cozinheiros eficientes.

***A colega DALVA MOLINA MANSANO, concorre com uma reflexão sobre o texto COZINHEIROS DA VIDA. Agradeço o brilhantismo de sua intervenção, querida amiga e colega.

Gostei do fato de você preferir o verbo COZINHAR a cozer, porque sugere algo mais demorado, meticuloso, no ritmo do dia-a-dia, mesmo! Também considerei ótimo o paralelo COZINHAR/FILOSOFAR. Realmente, todos temos essa vocação filosófica, pena que muitas vezes "COZINHAMOS O GALO", a julgar pela demora em tomarmos decisões.

Como você diz, passamos a vida misturando ingredientes e temperos, buscando o sabor ideal (na cozinha da vida); em algumas dessas empreitadas, percebemos que todos os cuidados foram em vão e o resultado decepciona. Então, como bons "cozinheiros", voltamos a refazer a receita, quantas vezes forem necessárias, para um prato ideal, pois esta é uma característica humana.

Neste ponto, penso que cabe muito bem uma reflexão de Foucault, quando ele diz que "a razão é histórica, ou seja, muda temporalmente".

Analisando o que você afirma: "a cozinha e a vida são batalhas que formam a guerra do cotidiano” (ótima comparação!) e que, no pós-guerra, a cozinha francesa atingiu o atual status, podemos inferir que, analisando a sociedade atual, sob sua ótica (de Tânia), a nossa história pode ser mudada e, consequentemente, com relação ao processo político, por exemplo, a população não deve cair na armadilha do continuísmo, embora as mudanças não devam ser radicais. Entra aí a "troca" de cascas" e eliminação das mesmas, deixando aquelas que nos são inerentes e fazem parte das nossas íntimas loucuras. Podemos eliminar todos esses sentimentos baixos (rasteiros) por você elencados, tais como sadismos, masoquismos, ironias etc. de nós e da sociedade, em geral.

Penso que os filósofos deixaram-nos suas ideias e pensamentos e que estas servem para nos aproveitarmos deles e aprendermos. Todavia, não podemos nos dar por satisfeitos, concordando com tudo o que disseram. Seu texto, de maneira muito contemporânea, traz um filosofar profundo, de forma leve e bem humorada, que também nos convida a raciocinar, dentro dos padrões e fatos de hoje.

Nessas possibilidades de escolha racional que você propõe, outra vez leva-nos ao pensamento de Foucault, quando na introdução de A Arqueologia do Saber, ele afirma haver "mudança na prática dos historiadores e que o aparecimento de períodos longos na história de hoje não significa retorno às filosofias da história; é o efeito da elaboração, metodologicamente organizada das séries”. (p.87).

"Da mobilidade política às lentidões próprias da civilização material" os níveis de análise se multiplicaram, cada um tem suas rupturas específicas, cada um tem seu recorte que só a si pertence. (Foucault, 1986, p. 3-4; Carlos José Martins, Utopias e heterotopias na obra de Michel Foucault, p.85-86).

Precisamos lutar contra os perigos e os riscos que corremos diante das vicissitudes a que estamos expostos. Refiro-me, Tânia, a todos os tipos de riscos atuais, desde as violências cometidas entre semelhantes que se agridem mutuamente e políticos que nos subjugam com atitudes desrespeitosas, em nome dos votos que, inadvertidamente, incautos depositam nas urnas por ocasião das eleições. A "troca de cascas" proposta por você contempla muito bem esse aspecto: jogamos fora o que não presta e resguardamos nossa essência.

Sartre afirmou que "o mais importante na vida é sabermos o que faremos do que fizeram de nós".

Aos poucos, "cozinhando e trocando ingredientes", vamos tomando consciência do que é feito de nós diariamente, sem que nos peçam licença ou, ao menos, informem-nos de suas intenções.

O Estruturalismo desenvolveu-se, principalmente, na França nos anos 60, corrente que garantia que o mais importante não é a transformação de uma realidade, mas a estrutura e a forma que ela tem no presente. Esse fato teve grande peso sobre o pensamento filosófico e refletiu na discussão sobre a razão.

Portanto, amiga, a sua loucura está nessa cozinha, PLENAMENTE LÚCIDA! Ou sua lucidez está PLENAMENTE LOUCA? OU ENLOUQUECEMOS AS DUAS? Garanto pra você que a sua loucura é linda como a mais linda primavera!ADOREI!!!

***ENTENDI QUE O COMENTÁRIO DA COLEGA E CELÊDIAN DE ASSIS CAIU COMO UMA LUVA PARA FINALIZAR O TEXTO E ESTE AGORA TEM A PARTICIPAÇÃO DAS TRÊS: TÂNIA, DALVA MOLINA E CELÊDIAN ASSIS.